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O reencontro com a criança que eu fui

Há uma criança dentro de cada um de nós. Ela não desaparece com o tempo, apenas se esconde. Espera, silenciosa, o momento em que possamos olhá-la com ternura, ouvi-la sem julgamentos e acolher suas dores.

No meu caso, o reencontro com a minha criança interior foi uma das experiências mais transformadoras da vida adulta. Fui uma criança madura demais para a idade. Carregava uma autoexigência precoce, criada para me dar uma falsa sensação de segurança em um ambiente onde a imprevisibilidade era regra.

Enquanto outras crianças brincavam, eu me preocupava com o sofrimento da minha mãe, com as brigas ao redor, com a direção perigosa de todos em meu lar, que envolvia inúmeros acidentes, com o dinheiro que ora existia, ora sumia. Cresci tensa, em alerta constante, acumulando dores de cabeça, dores no corpo e a “doença do domingo”, aquela tristeza que ninguém compreendia, mas que hoje sei ser o reflexo do meu apego ansioso e do medo de separação.

Na escola, a vergonha era minha companheira. Ser chamada para ler em voz alta me fazia entrar em desespero. Ninguém falava em dislexia ou TDAH — eu era apenas “lenta”, “distraída”, “inepta”. Mesmo com os testes de QI mostrando o contrário, a dúvida pairava no ar. O problema era sempre eu.

E, ainda assim, amava minha família profundamente. Tínhamos uma casa cheia de gente, música, risadas, comida boa e amigos. Minha mãe era a alma das festas, meu pai se encantava com minhas histórias de menina “moleca”. Mas, por trás disso, havia também o peso das expectativas, o medo de decepcionar, a tentativa constante de ser “perfeita o suficiente” para não ser criticada.

Minha mãe, com seus próprios medos e feridas, tentava me proteger do mundo e, sem perceber, me transmitia a ideia de que amar era vigiar, controlar, preocupar-se o tempo todo. Meu pai, por outro lado, entendia minha necessidade de autonomia, mas seu olhar muitas vezes se perdia em meio às demandas de uma família grande. Hora atenção e afeto, hora frieza e negligência. Eles deram o melhor que podiam — e hoje, adulta, entendo isso profundamente.

Mas a menina que fui sentiu falta de ser cuidada. Cresceu cuidando demais. Tentando organizar o caos, apagar incêndios, sustentar o que era pesado demais para os ombros de uma criança. Eu era doce, sensível, mas aprendi cedo a vestir uma armadura. A ser a “menina brava”, a que não levava desaforo pra casa. Era assim que eu acreditava conquistar atenção, respeito e amor.

Hoje, ao revisitar essa menina, percebo o quanto ela endureceu para não doer. E o quanto, agora, minha adulta precisa deixá-la falar. Quando ouço sua voz — sua dor, sua carência, sua confusão — sinto um nó na garganta, mas também uma libertação.

Reencontrar minha criança interior me ensina diariamente a ser uma mãe diferente. Não perfeita, mas suficientemente boa. A cada gesto de cuidado com minhas filhas, aprendo a cuidar também daquela menina dentro de mim, a acolhê-la, a permitir que ela exista com todas as suas partes: a forte, a sensível, a assustada.

Entendo hoje que reparentalizar-se é um ato de amor: por nós e pelos que vieram antes. Ao olhar com compaixão para minha história, consigo enxergar a humanidade dos meus pais, dos meus irmãos e de mim mesma. E assim seguimos, geração após geração, buscando nos tornar versões mais conscientes, mais leves, mais inteiras.

A criança que fui ainda vive em mim.
Mas agora, ela pode brincar.
Pode errar.
Pode descansar.
Porque finalmente encontrou, em mim, um lar seguro para existir.

Foto de Natasha Taques

Natasha Taques

Psicóloga clínica (CRP-15/6536), formada em Terapia do Esquema pelo Instituto de Educação e Reabilitação Emocional (INSERE), Formação em Terapia do Esquema para casal pelo Instituto de Teoria e Pesquisa em Psicoterapia Cognitivo-Comportamental (ITPC).
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