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Antes do último ato: as tragédias que começam no silêncio

Algumas histórias chegam até nós como se começassem no momento do disparo, do impacto, da reação extrema. Mas quem acompanha a vida das mulheres sabe que nenhuma história começa ali. Antes daquele instante final existe uma longa sequência de medos, pedidos de ajuda ignorados, silêncios institucionais e noites mal dormidas que nunca viram notícia. Na maior parte das vezes, a decisão é de sucumbir, de desistir de tentar salvar a própria sobrevivência. E isso vai muito além da vida, porque significa se entregar ao ciclo que a aprisiona.

Nada disso significa defender ou justificar condutas extremas. A ideia de fazer justiça com as próprias mãos, ou de se entregar à violência, é a marca de uma justiça que demorou demais a chegar. Quando uma mulher, esgotada, atravessa esse limite, as consequências a atingem profundamente. Muitas sequer pensam nelas, mas entendem que viver como vítima pode ser ainda mais doloroso do que enfrentar o julgamento social.

Nem sempre há escolha. E, quando existe, ela nunca nasce no minuto da tragédia. Ela é fruto da vida colocada entre duas dores: continuar sendo lentamente desvivida por um ciclo de violência ou tentar sobreviver como for possível. Ninguém deveria ser submetido a essa bifurcação. Ainda assim, vivemos numa sociedade em que o julgamento chega rápido demais para as mulheres e tarde demais para os homens que as violentaram.

O rigor moral imposto às mulheres nunca se aplica a eles. A elas se exige equilíbrio absoluto, autocontrole incansável e força para suportar dores que ninguém ousaria suportar. A eles se concede o benefício da dúvida, a narrativa da provocação, a imagem do pai dedicado, mesmo diante de sinais explícitos de manipulação ou violência. Mulheres são avaliadas como se tivessem obrigação permanente de evitar tragédias, mesmo quando já estão emocionalmente exauridas. Homens são avaliados como se merecessem compreensão automática. É nesse desequilíbrio que tragédias se formam.

Quando uma mulher denuncia, poucos acreditam. Quando pede ajuda, dizem que exagera. Quando tenta se proteger, mandam que tenha calma. Quando reage ao desespero, chamam de monstruosa. Sua vida vira uma vitrine exposta ao julgamento público. Tudo nela é observado com lupa. Tudo nele é relativizado com indulgência.

A violência que aparece no noticiário costuma ser apenas a ponta final. A outra parte é silenciosa. É feita de pequenas mortes diárias que retiram alegria, autonomia, maternidade, capacidade de decidir, saúde mental e identidade. Violências que não deixam marcas, mas corroem o corpo e o espírito. Violências que transformam a casa em território inseguro e fazem a mulher duvidar de si. São essas violências contínuas que frequentemente a empurram ao limite, porque ninguém viu, porque ninguém quis ver.

A teoria ajuda a entender esse abandono. Achille Mbembe descreve a necropolítica como o modo pelo qual determinados grupos são empurrados para existências marcadas por desgaste, abandono e morte lenta. Entre mulheres e crianças, ela se manifesta na negligência que as deixa expostas à violência, à manipulação e ao colapso das redes de proteção. É uma política da omissão que define quais vidas merecem urgência e quais sobreviverão sozinhas até não suportar mais. E é nesse cenário que muitas chegam ao limite: não por escolha, mas por falta de alternativas reais.

O puerpério revela com nitidez essa precariedade. É um dos períodos em que mais se exige das mulheres e um dos que menos recebem apoio. Quando ocorre um colapso emocional, uma ruptura psíquica ou um gesto extremo, as pessoas só enxergam o absurdo do ato, ignorando toda a arquitetura de exaustão, sobrecarga, noites sem dormir, dor emocional, ausência de rede de apoio e adoecimento mental que o antecedem.

O medo de morrer e o medo de desaparecer como ser humano e como mãe pertencem à mesma família de perigos. São medos que corroem, tiram o ar e colocam a mulher em estado permanente de alerta. Mesmo assim, quando histórias como essas chegam ao público, a pergunta é sempre a errada: Por que ela fez isso? Por que reagiu assim?

A pergunta honesta deveria ser outra: Como ela conseguiu sobreviver até agora? Quem a escutou? Quem a protegeu antes que o desfecho se tornasse irreversível? Quem viu os sinais? Quem acolheu a angústia real de viver sob múltiplas ameaças?

É urgente reconhecer que o que empurra essas mulheres para o limite não é um fato isolado, mas a soma de muitas violências. Há a violência que tenta matá-la de uma vez e a que tenta matá-la aos poucos. Há o perigo que se anuncia na esquina e o que se infiltra no cotidiano. Há o agressor que ameaça o corpo e o que ameaça seu vínculo com o próprio filho. Ignorar essas camadas é também uma forma de violência.

Esta reflexão não existe para justificar excessos, mas para lembrar que o julgamento público não pode se apoiar somente no último ato. O último ato é barulhento, mas raramente é explicativo. O que revela a história é o que veio antes, principalmente o que foi ignorado.

A ausência de políticas públicas, a negligência com a saúde mental materna, a falta de fiscalização das medidas protetivas, a indiferença com o puerpério, a lentidão do Judiciário, a romantização da paternidade, a responsabilização exclusiva da mãe. Quando uma tragédia acontece, não é uma mulher que falhou. É uma sociedade inteira que não cumpriu seu papel.

Mulheres não chegam ao extremo por vontade. Chegam porque encontraram portas fechadas, autoridades indiferentes, leis mal aplicadas e uma sociedade que exige delas autocontrole infinito, mesmo quando vivem em estado permanente de ameaça.

É por isso que a pergunta central nunca deveria ser o que aconteceu, mas o que deixou de acontecer antes: Quem deveria ter protegido? Quem deveria ter intervindo? Quem deveria ter escutado? Quem deveria ter agido? É nesse vazio que as tragédias se alimentam.

Nenhuma mulher deveria ser empurrada para o limite da própria sobrevivência. Nenhuma deveria viver entre o medo de morrer e o medo de desaparecer. Nenhuma deveria ser julgada sozinha por aquilo que poderia ter sido evitado se o mundo ao redor tivesse feito a sua parte.

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