Por Ana Paes (CRP 15/1965)
No Dia da Consciência Negra, muito se fala sobre racismo estrutural, desigualdade e resistência. Mas ainda se fala pouco, quase nada, sobre pessoas negras neurodivergentes: autistas, com TDAH, dislexia e outras condições que influenciam a forma de pensar, sentir e existir no mundo. Elas vivem em um corpo marcado por duas camadas de opressão: a racial e a neurológica. E essas camadas não se somam, elas se multiplicam.
Este texto é um convite a enxergar essas camadas com profundidade…
Quando o comportamento vira alvo antes da humanidade
A sociedade frequentemente interpreta comportamentos neurodivergentes de maneira equivocada. Mas, quando o corpo é negro, essa interpretação vem carregada de estereótipos históricos. Por exemplo: autistas são lidos como “mal-educados”, pessoas com TDAH são rotuladas como “indisciplinadas”, dificuldades sociais são confundidas com “arrogância” e sensibilidades sensoriais são entendidas como “frescura”. Não é neurociência, é racismo! E esses equívocos repetidos ao longo da vida constroem marcas emocionais profundas e têm consequências imensuráveis na construção do self.
Esquemas precoces que se formam com frequência
Com base na Terapia do Esquema, observa-se que pessoas negras neurodivergentes tendem a desenvolver alguns padrões emocionais com maior intensidade:
– Desconfiança / Abuso
Forjada por vivências reais de discriminação, invalidação e violências acumuladas. Esses esquemas não são falhas pessoais. São respostas emocionais a contextos hostis.
– Defectividade / Vergonha
Quando raça e neurodivergência se encontram, o sentimento de inadequação aparece cedo e se cristaliza, não por características internas, mas pela repetição de mensagens de desvalor. A mensagem internalizada é: “Tem algo profundamente errado em mim.”
– Isolamento Social / Alienação
Percepção de não pertencimento em nenhum grupo (racial, profissional ou neurodivergente).
– Subjugação
Para evitar punição, discriminação ou até mesmo violência simbólica, muitas pessoas negras aprendem desde cedo a “não chamar atenção” e “não parecer desrespeitosas”.
Se forem neurodivergentes, isso pode incluir camuflagem social exaustiva.
– Autossacrifício
É muito comum que pessoas negras (e ainda mais quando neurodivergentes) aprendam desde cedo que não podem “dar trabalho”, não podem “reclamar”, não podem “ser frágeis” e que precisam cuidar de todo mundo, segurando as próprias dores. Isso vira: “Eu me anulo, contanto que ninguém se volte contra mim.” “Eu aguento, eu dou conta, eu seguro as pontas.” Na linguagem da Terapia do Esquema, o esquema de autossacrifício surge como forma de proteção e pertencimento em um ambiente racista e capacitista.
– Busca de Aprovação e Reconhecimento
Marcados pela necessidade constante de provar valor, ser irrepreensível e conquistar validação em contextos que historicamente negam pertencimento e dignidade.
– Padrões Inflexíveis
A cobrança é brutal: “Preciso ser duas vezes melhor para ser minimamente aceito.” O perfeccionismo protetor nasce como mecanismo de sobrevivência.
A clínica que não olha para raça, não enxerga a história completa
É impossível falar de saúde mental sem falar de raça. E é impossível falar de neurodivergência em pessoas negras sem considerar as diferenças de diagnóstico, subnotificação, acesso limitado, violência institucional e experiências de exclusão desde a infância.
Neurodiversidade não existe no vácuo.
Ela existe dentro de biografias.
O caminho para uma inclusão real
Mais do que celebrar a data, precisamos transformar estruturas. Incluir pessoas negras neurodivergentes significa rever práticas clínicas, rever processos seletivos, ajustar ambientes sensoriais, treinar equipes para reconhecer vieses, validar experiências vividas, reduzir camuflagem social e acolher comunicações e necessidades diversas. Porque, no final, a verdadeira inclusão não é estética, é estrutural.
Quando raça e neurodivergência se encontram, nasce uma força que não deveria ser forjada na dor
Hoje, e todos os dias, a Consciência Negra precisa incluir também a consciência neurodivergente, porque ninguém deveria lutar duas guerras para poder existir. Ser uma pessoa negra neurodivergente não é viver “duas identidades”. É viver uma existência atravessada por histórias que precisam, urgentemente, ser ouvidas.
No Dia da Consciência Negra, que possamos ampliar o olhar na clínica, no trabalho, na pesquisa e nas narrativas que contamos sobre saúde mental não apenas para a luta, mas para as vidas inteiras, complexas e singulares que resistem todos os dias. Afinal, vidas negras e neurodivergentes importam. E talvez a verdadeira consciência comece justamente aqui: quando deixamos de falar sobre essas pessoas e passamos a construir, com elas, um mundo em que existir não seja ato de coragem, mas direito garantido…