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Perdão, Gerson. Não foi a leoa que o matou, foi a nossa negligência

Foto: Conselheira tutelar e Gerson

Uma série de negligências. É impossível pensar em outra coisa desde que li a história de Gerson de Melo Machado, 19 anos, o jovem que invadiu a jaula de uma leoa no zoológico de João Pessoa e acabou morto por ela. Antes de falar sobre tudo o que falhou ao longo da vida dele, é preciso olhar para a maneira como a mídia abordou esse caso nas primeiras horas, quando a pressa falou mais alto do que o compromisso com a verdade.

Ontem, eu vi sites de notícias e páginas no Instagram noticiando que Gerson tinha sido preso dez vezes, construindo a imagem de um “perigoso”. Em poucas linhas, ele deixou de ser um jovem vulnerável para se transformar em uma ameaça.

A narrativa já estava pronta: mais um “criminoso” que, segundo alguns perfis, “procurou a própria morte”. Mas o jornalista Carlos Madeiro, do UOL, fez o que deveria ser a base do nosso trabalho: investigou, ouviu quem acompanhou a trajetória desse jovem e mostrou que a história era muito mais complexa.

Leia aqui: Mãe destituída e esquizofrenia: a história trágica do jovem morto por leoa.

Ler a matéria dele, que revisita a infância e os desafios de saúde mental de Gerson, me causou um embrulho no estômago. Eu sou jornalista. Eu sei que a rotina é marcada pela pressa, pela concorrência, pela ansiedade pelo clique e pelo furo.

Sei também que, muitas vezes, quando uma história tem potencial de viralizar, há um impulso quase automático de publicar antes de apurar. Só que isso não é justificativa para reforçar estigmas e silenciar contextos. A reportagem de Madeiro trouxe a perspectiva que ninguém tinha dado, justamente a que mais importava.

Estamos falando de um jovem com diagnóstico de deficiência intelectual e esquizofrenia. A mãe e a avó também tinham esquizofrenia. Ele cresceu em um ambiente marcado pela vulnerabilidade e por uma rede de apoio falha.

Uma das pessoas que melhor conhecia a trajetória dele era a conselheira tutelar Verônica Oliveira, que acompanhou Gerson por nove anos. Na reportagem, ela lembra que ele tinha um sonho fixo: ir para a África e ser domador de leões.

A conselheira ainda disse mais: Gerson estava em surto e não tinha consciência do risco. Ela afirma que ele precisava de um acompanhamento de saúde mental digno, mas não recebeu. E diz algo que me atravessou: todo o poder público falhou com ele e com a família.

Além de jornalista, eu estou estudando psicologia. No segundo período, cursei a disciplina de desenvolvimento infantil e do adolescente. Foi a primeira vez que entendi, com profundidade, como uma infância negligenciada molda trajetórias.

Falamos sobre vínculos, ambiente, afeto, estímulos e proteção. Falamos sobre o impacto de crescer sem segurança emocional, sem referências estáveis, sem saúde mental acompanhada. Falamos sobre como isso tudo pode resultar em comportamentos que não são escolhas racionais, mas respostas possíveis dentro de uma história marcada por rupturas, dores e abandonos.

Não há como olhar para esse jovem de 19 anos sem olhar para o menino de 9, 10, 12, 13 que ele um dia foi. E não há como julgar suas ações sem olhar para tudo o que faltou a ele. Faltou tanto, Gerson!

A morte de Gerson não pode ser tratada como mais um caso “bizarro”. Ela é reflexo de um sistema que falhou e que não ofereceu a proteção e o cuidado que ele merecia. Gerson morreu de forma cruel e, quando isso aconteceu, a mídia, de certa maneira, também falhou com ele.

O debate sobre saúde mental avançou, mas ainda é marcado por tabus e, quando casos assim acontecem sem a devida contextualização, a pessoa que era vítima vira a culpada, a agressora, a responsável por sua própria tragédia e é exatamente esse tipo de distorção que precisamos enfrentar.

Transtorno mental existe, é real e deveria ser tratado com a mesma seriedade com que lidamos com qualquer outra condição de saúde. Mas, na prática, ainda vemos um país que culpa, ridiculariza e criminaliza pessoas em sofrimento psíquico, especialmente quando elas nascem pobres, vulneráveis e cercadas de negligências desde a infância.

Sua história nos obriga a olhar para dentro e perguntar: quantas vidas como a dele ainda serão destruídas antes de entendermos que negligência também mata?

Perdão, Gerson. Não foi a leoa que o matou, foi a nossa negligência.

Foto de Raíssa França

Raíssa França

Cofundadora do Eufêmea, Jornalista formada pela UNIT Alagoas e pós-graduanda em Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade. Em 2023, venceu o Troféu Mulher Imprensa na categoria Nordeste e o prêmio Sebrae Mulher de Negócios em Alagoas.
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