Por Bruna Sales
Entre o que é sagrado e o que é vivido, existe um campo delicado. Um espaço onde a fé não se limita às orações, mas se projeta nas normas, nos costumes — e também nas leis. A espiritualidade, quando institucionalizada, influencia não apenas crenças, mas decisões sobre o que pode ou não ser reconhecido como direito.
Ainda que o Brasil seja um Estado laico, a presença da religião continua a interferir em políticas públicas, discursos oficiais e interpretações jurídicas.
Questões como saúde reprodutiva, igualdade de gênero, proteção à diversidade ou mesmo o acesso ao próprio corpo frequentemente encontram barreiras — não por falta de argumentos técnicos, mas pela força de convicções morais, baseadas em interpretações religiosas.
É nesse ponto que a teóloga brasileira Ivone Gebara nos convida à crítica amorosa: segundo ela, a espiritualidade deveria abrir caminhos, e não fechá-los. A fé não oprime — quem oprime são as leituras construídas historicamente para manter estruturas de poder.
A fé, para mim, jamais pode aprisionar. Ela é, por essência, força de liberdade e encontro. Quem aprisiona são as crenças — especialmente aquelas construídas para conter, normatizar, silenciar. Crenças que, ao longo do tempo, foram vestidas de sagrado, mas nasceram da necessidade de controle.
A espiritualidade verdadeira não exige obediência cega, mas convida à consciência viva. E nesse caminho, muitas mulheres têm reencontrado suas vozes — dentro da própria fé.
Foi nesse espírito de liberdade que o Papa Francisco afirmou, com coragem: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças.” Sua fala revela que uma fé viva não se protege do mundo — ela se arrisca nele. Uma espiritualidade que serve à vida não se recolhe: ela caminha, mesmo tropeçando, com quem vive à margem.
É nesse cruzamento entre fé e estrutura que tantas vivem seus dilemas: entre o desejo e a doutrina, entre o que sentem e o que esperam delas, entre o que está previsto na lei e o que é permitido na cultura.
A religião, para muitas de nós, é abrigo, memória, esperança. Ela nos acompanha nos ritos de passagem, nas orações silenciosas, nas palavras que sustentam. Mas também pode estar nas regras sutis — ou explícitas — que orientam como devemos viver, sentir, vestir, sonhar.
Quantas histórias ouvimos de mulheres que adiaram planos, silenciaram vontades ou carregaram culpas em nome de uma fé moldada mais por medo do que por amor?
A escritora e pensadora norte-americana bell hooks, que dedicou sua obra a refletir sobre amor, cuidado e justiça social, dizia que uma espiritualidade autêntica nos aproxima do amor — e não do medo. E amor, muitas vezes, significa poder ser quem se é, com todas as dúvidas, desejos e imperfeições.
Por outro lado, há também histórias de reconstrução. Mulheres que encontraram, dentro da própria fé, força para recomeçar. Que reinterpretaram textos sagrados com outros olhos. Que redescobriram sua voz em comunidades onde antes só havia eco.
A escritora Chimamanda Ngozi Adichie, nigeriana e autora de reflexões sobre cultura e identidade, compartilha que passou boa parte da vida tentando caber nos moldes que lhe foram impostos — até perceber que não precisava se encolher para ser aceita. Nem pela sociedade. Nem diante de Deus.
Fé e liberdade não precisam caminhar em lados opostos. Talvez a espiritualidade mais viva seja aquela que nos permita continuar acreditando — inclusive em nós mesmas.
Como costuma lembrar a pastora batista Odja Barros, referência nacional em leitura bíblica inclusiva, Jesus chamava as mulheres pelo nome, tocava, escutava e acolhia. Sua fé se manifestava em presença — nunca em exclusão.
Acreditar em um Deus que habita dentro, que se revela com inteireza e compaixão, não para nos apagar, mas para nos lembrar de quem somos. Não se trata de estar acima da fé, mas de reconhecer que muitas vezes, foram as interpretações humanas — e não a vontade divina — que nos silenciaram.
Neste tempo de Páscoa, talvez o convite não seja apenas ao renascimento de Cristo, mas à ressurreição de tudo que em nós foi deixado para trás por medo, culpa ou obediência sem escuta. E que esse Deus, vivo em tantas formas de fé, continue sendo encontro — não contenção.
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Referências Bibliográficas
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
BARROS, Odja. Jesus e as mulheres: uma leitura a partir das margens. In: GONZALEZ, Maria Clara Bingemer; REIS, Carmem Lúcia C. (orgs.). Mulheres e religião: experiências e reflexões na América Latina. Petrópolis: Vozes, 2022. p. 73-88.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Art. 5º, VI e Art. 19, I.
FRANCISCO. Evangelii Gaudium: Exortação Apostólica sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2013.
GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal. Petrópolis: Vozes, 2000.
HOOKS, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Elefante, 2021.