Por Anne Caroline Fidelis e Bruna Sales
A violência contra a mulher, em especial aquela que ocorre no âmbito doméstico e relacional, se manifesta de maneira complexa, muitas vezes silenciosa e, por isso, subestimada. Em tempos recentes, um caso local chamou a atenção pelo relato público de uma jovem empreendedora que enfrentou, por anos, práticas constantes de controle psicológico e econômico por parte de seu parceiro.
A mulher, reconhecida por sua autonomia e liderança, revelou episódios de violência psicológica, patrimonial e uma tentativa de internação forçada, num contexto claramente marcado por abuso emocional.
Este artigo propõe refletir sobre os aspectos jurídicos e processuais que envolvem esse tipo de violência, articulando-os com a teoria feminista e os conceitos de gaslighting, narcisismo e silenciamento institucional, na tentativa de compreender como o sistema de justiça deve atuar diante dessas formas de dominação invisível.
Gaslighting, narcisismo e a violência que não deixa marcas visíveis
Em relações abusivas, o domínio nem sempre se impõe por meio de força física. Muitas vezes, ele se estabelece pela manipulação emocional e psicológica, que vai corroendo a autoestima da vítima até fazê-la duvidar da própria sanidade. Essa dinâmica é conhecida como gaslighting, um tipo de violência que busca distorcer a percepção da realidade da vítima, tornando-a dependente da narrativa do agressor (LIMA, 2021).
O perfil narcisista, presente em muitos casos, reforça esse ciclo de dominação: o agressor projeta uma imagem pública de afeto e controle, ao passo que, no âmbito privado, desqualifica e fragiliza emocionalmente a parceira. A tentativa de internação compulsória, como relatado no caso em análise, é um recurso extremo dessa prática, que pretende anular a credibilidade da vítima, atribuindo a ela o rótulo de desequilíbrio mental. Trata-se de uma tática perversa de silenciamento.
Como destaca Chesler (2017), o patriarcado historicamente atribuiu às mulheres a pecha da irracionalidade, legitimando sua exclusão dos espaços de poder e decisão. O uso de diagnósticos psiquiátricos para desautorizar a mulher é apenas mais uma roupagem desse controle histórico.
Violência psicológica e patrimonial na Lei Maria da Penha
A Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, é um marco jurídico no enfrentamento à violência contra a mulher no Brasil. Ela reconhece cinco formas de violência doméstica e familiar: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral (BRASIL, 2006). No caso em análise, sobressaem duas delas: a psicológica e a patrimonial.
A violência psicológica, prevista no art. 7º, inciso II da Lei, compreende qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima da mulher, inclusive por meio de ameaça, humilhação, manipulação e isolamento. Já a violência patrimonial, tratada no inciso IV, refere-se à retenção, subtração, destruição parcial ou total de bens, documentos pessoais, instrumentos de trabalho ou recursos econômicos da mulher.
A supressão de acesso a recursos financeiros, o controle sobre negócios conjuntos e a tentativa de invalidar a autonomia da mulher por meio de medidas de força — como a internação sem respaldo médico ou judicial legítimo — são exemplos concretos de como a violência patrimonial e psicológica se entrelaçam na prática cotidiana dos relacionamentos abusivos.
O desafio processual: quando o sistema também silencia
A dificuldade de reconhecimento institucional das violências “não visíveis” ainda é um dos maiores obstáculos para a efetiva proteção das mulheres. A ausência de marcas físicas leva à desconfiança, à banalização e até à culpabilização da vítima.
Como afirma Butler (2015), “a dor que não é reconhecida se torna uma não-vida”. O silêncio institucional diante do sofrimento feminino contribui para perpetuar a lógica de impunidade. A tentativa de judicializar a dor, sem compreender suas complexidades, gera novos traumas e alimenta o descrédito no sistema.
É fundamental que o Poder Judiciário aplique o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ e observe a Recomendação nº 128/2022, que orienta uma escuta qualificada, sem julgamentos morais ou estigmatizações. A vítima de violência patrimonial e psicológica precisa ser acolhida, não investigada como se fosse autora do próprio sofrimento.
Feminismo e resistência: dar nome ao que nos fere
Para Angela Davis (2016), romper o silêncio diante da violência é um ato político e revolucionário. Mulheres que decidem falar, mesmo em ambientes hostis, desafiam a lógica patriarcal do medo e da submissão. Ao denunciar as práticas abusivas, a mulher não apenas revela sua dor, mas questiona toda uma estrutura que normaliza o controle e o silenciamento do feminino.
A exposição pública da violência, como ocorreu no caso em análise, serve como forma de resistência. Não se trata de autopromoção, mas de autoproteção e de denúncia coletiva. A coragem de narrar a própria dor pode inspirar outras mulheres a reconhecerem sinais de abuso e a buscarem apoio.
Federici (2019) destaca que o controle sobre os corpos e os recursos das mulheres faz parte de um projeto contínuo de dominação. Romper com esse ciclo é uma tarefa coletiva: envolve redes de apoio, políticas públicas, educação jurídica e sensibilidade feminista.
O caso revela uma faceta perversa da violência doméstica: aquela que mina a autoestima, suga os recursos da vítima e, por fim, tenta apagar sua voz. A violência psicológica e patrimonial ainda são pouco compreendidas, mas não menos destrutivas. Elas deixam marcas invisíveis, mas profundas.
Ao refletirmos sobre esse episódio, sem expor nomes, reafirmamos a importância de uma justiça com perspectiva de gênero, da valorização da escuta das mulheres e da responsabilização dos agressores — inclusive quando suas armas são a manipulação, o controle financeiro e o discurso de loucura.
Que o ato de falar continue sendo, para muitas, o início do fim da violência. E que nunca mais uma mulher precise adoecer para ser ouvida.
Referências
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 21 abr. 2025.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
CHESLER, Phyllis. Women and Madness. New York: Palgrave Macmillan, 2017.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas. São Paulo: Elefante, 2019.
LIMA, Ana Paula. Gaslighting: o abuso psicológico silencioso. São Paulo: Autêntica, 2021.