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Em abril de 2025, uma estudante negra de 15 anos foi encontrada desacordada no banheiro do Colégio Presbiteriano Mackenzie, uma das escolas particulares mais tradicionais de São Paulo. Segundo a família, a aluna, bolsista e matriculada no 9º ano, vinha sendo alvo constante de racismo, bullying e violência psicológica desde que ingressou na instituição.
As denúncias relatam ofensas verbais como os insultos “cigarro queimado” e “lésbica preta”, além de episódios de coerção e exposição pública, tanto dentro da escola quanto em redes sociais. O caso escancara a falta de protocolos eficazes para o enfrentamento do racismo em instituições de ensino — uma ausência que, segundo a professora e pesquisadora Anabelle Lages, é sintoma de um problema estrutural.
Bacharel em Direito, doutora em Sociologia e docente da Universidade de Pernambuco, Anabelle é fundadora da Emoriô, iniciativa dedicada à promoção de uma educação antirracista.
Educação antirracista não pode ser ação isolada

Segundo Anabelle Lages, quando há iniciativas voltadas ao combate ao racismo nas escolas, elas geralmente surgem de forma isolada, partem de professores ou coordenadores pedagógicos, mas não são incorporadas ao projeto político-pedagógico das instituições.
Ela destaca que os cursos de licenciatura e pedagogia ainda tratam a formação antirracista como um tema periférico. Já os profissionais que estão em sala de aula raramente recebem formação continuada na área. “Nas escolas privadas, esse cenário é ainda mais frágil”, observa.
“Muitas instituições acreditam que uma palestra no mês da Consciência Negra é suficiente. O discurso de inclusão não se converte em mudanças estruturais. Falta compromisso com a formação da equipe, dos gestores ao corpo administrativo”, diz.
A resistência a uma educação antirracista, segundo Anabelle, também se revela na preocupação excessiva com a opinião de determinados grupos de pais. Por receio de críticas, muitas vezes sustentadas por discursos que classificam o debate como ideológico ou desnecessário, as escolas evitam tratar o tema com profundidade.
“Há um temor sobre o que algumas famílias vão pensar. Enquanto isso, o racismo continua sendo reproduzido por crianças brancas, que também perdem sua humanidade ao agredir. É preciso ensinar as crianças negras a não tolerar e as brancas a não praticar.”
Descumprimento de leis e racismo estrutural
Os efeitos do racismo no ambiente escolar impactam diretamente o processo de aprendizagem. Anabelle Lages ressalta que é difícil aprender quando se está exposto, de forma contínua, a situações de violência.
“Estudantes negros, especialmente meninas, recebem menos atenção de seus professores. São menos estimulados a participar das aulas e a pensar sobre seus futuros de forma ambiciosa.”
Além disso, muitas escolas descumprem a legislação que determina o ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena. As leis 10.639/03 e 11.645/08 estabelecem que esse conteúdo é obrigatório e deve ser tratado de forma transversal em todas as disciplinas da educação básica.
Para Anabelle, ignorar essas normas constitui uma violação passível de responsabilização civil e, em alguns casos, penal. A ausência desse conteúdo reforça uma narrativa eurocentrada que invisibiliza a produção intelectual, científica e cultural dos povos africanos e indígenas.
O racismo ultrapassa os muros da escola
Outro ponto destacado por Anabelle Lages é o papel das instituições de ensino na mediação de conflitos que ocorrem em ambientes digitais. Grupos de WhatsApp e redes sociais formados a partir das relações escolares também devem ser responsabilidade das escolas.
“As escolas devem proteger os alunos nesses espaços. O sofrimento causado por uma ofensa virtual é real. Ignorar isso é negligência institucional.”
Impactos psicológicos do racismo

O racismo nas escolas atinge não apenas o desempenho pedagógico, mas também a saúde mental de crianças e adolescentes. É o que aponta a psicóloga clínica e hospitalar Gilvaneide Santos, mestranda em Psicologia Social. Segundo ela, episódios recorrentes de discriminação — muitas vezes disfarçados de brincadeiras ou exclusões sutis — podem provocar danos emocionais duradouros.
“A criança ou adolescente passa a internalizar sentimentos de inferioridade. Desenvolve baixa autoestima, uma autoimagem negativa, até mesmo um auto-ódio. É comum ter dificuldade de aceitação da própria etnia, porque é exatamente isso que a faz ser alvo de tanta violência”, explica.
Esse processo pode desencadear quadros de depressão, ansiedade, sintomas físicos, queda no rendimento escolar, isolamento social e até comportamentos agressivos como mecanismo de defesa. Segundo a especialista, o sofrimento psíquico costuma vir acompanhado de um sentimento persistente de rejeição.
Quando a violência é interseccional
Quando o racismo se cruza com outras formas de opressão, como o sexismo e a homofobia, o impacto psicológico se intensifica. No caso da adolescente do Colégio Mackenzie, as agressões verbais também atacaram sua sexualidade.
“Quando falamos de um corpo negro feminino atravessado por tantas camadas de violência, estamos falando de um sofrimento imensurável. É quase inacreditável imaginar que tamanha brutalidade possa ser infligida a uma menina de 15 anos. Os riscos de adoecimento psíquico aumentam significativamente nesse contexto.”
Ensinar a branquitude a reconhecer seus privilégios
Uma das lacunas do debate escolar, segundo Gilvaneide, é a ausência de estratégias para trabalhar o privilégio racial com alunos brancos sem constrangê-los ou culpabilizá-los.
“Se as escolas ensinassem a verdadeira história do Brasil, incluindo a presença negra, indígena e europeia, os alunos naturalmente compreenderiam de onde vêm e onde estão. Isso geraria consciência crítica, não culpa. As crianças não nascem odiando. Elas aprendem. E, da mesma forma, podem aprender a amar.”
Gilvaneide reforça que crianças brancas também precisam entender o papel que seus antepassados desempenharam nas estruturas de poder e como isso se reflete nos dias atuais. Trata-se de um processo de educação voltado para a empatia e a justiça social.
Representatividade como caminho para fortalecer a autoestima
Para romper o ciclo de silenciamento e violência, Gilvaneide defende o fortalecimento da autoestima de meninas negras com base em referências positivas. Não se trata apenas de ensinar a resistir, mas de possibilitar uma vivência escolar segura e afirmativa.
“Ensinem a elas quem foi Aqualtune, Carolina Maria de Jesus, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo, Cida Bento, Almerinda Farias Gama, Djamila Ribeiro, Angela Davis, bell hooks, Audre Lorde, Grada Kilomba. Contem sobre Ruby Bridges, Rosa Parks e a Rainha de Sabá. Mostrem que vieram de uma linhagem de mulheres poderosas. Façam-nas entender do que são capazes.”
Ela encerra com uma citação de Angela Davis, que, para ela, resume a urgência de transformar o ambiente escolar: “Quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.”