Anne Caroline Fidelis e Bruna Sales
Você já se fez essa pergunta em silêncio? Num banho demorado. Numa madrugada de medo. Num voo turbulento. Em meio ao caos da vida. Quem cuidaria dos meus filhos se eu partisse?
Essa pergunta, que queima no peito de tantas mulheres, ganhou rosto, nome e urgência com o caso de Marília Mendonça. A cantora — ícone de força, talento e representatividade — partiu de forma repentina em 2021. Desde então, seu filho, o pequeno Léo, passou a ser criado por sua avó materna, Dona Ruth, que o acolheu com o amor e a firmeza de quem segura o mundo para não deixar uma criança desabar.
Mas, em junho deste ano, o pai de Léo, o cantor Murilo Huff, entrou na Justiça pedindo a guarda unilateral do menino. Segundo ele, age pelo “bem maior da criança”. Segundo a avó, é uma atitude desumana.
E o Brasil assistiu, com o coração apertado, à judicialização de algo que parecia tão claro: o vínculo, o afeto, o colo. Quem estava lá quando a dor era grande demais para um corpo pequeno suportar? Quem cuidou de verdade?
A quem pertence o cuidado?
A morte de um dos genitores não transfere automaticamente a guarda ao outro. Isso porque a lei brasileira — tanto o Código Civil (art. 1.584) quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 33) — prevê que a decisão sobre a guarda deve sempre considerar o melhor interesse da criança. E o que seria esse “melhor interesse”? É aquilo que garante proteção, estabilidade, continuidade e afeto.
O problema é que, muitas vezes, o Judiciário olha para a certidão de nascimento, mas não enxerga quem lava a roupa, quem acorda de madrugada, quem leva ao médico, quem conhece o choro pelo som. Olha para os papéis, mas não vê as mãos.
Há ainda uma camada delicada que precisa ser dita: quem fica com a guarda da criança também costuma ser, por regra, a pessoa responsável por administrar o patrimônio que ela herda. Isso porque, salvo disposição contrária expressa (como em testamento), o Código Civil estabelece que quem exerce o poder familiar — ou seja, quem detém a guarda legal — também responde pela gestão dos bens da criança, sempre em nome dela e em seu benefício.
É possível, sim, nomear uma pessoa diferente para essa função, como um tutor patrimonial. Mas na prática, quase nunca isso é feito. E o resultado é que afeto e herança acabam se misturando num mesmo litígio.
O risco? Que o cuidado, tão visceral e invisível em vida, vire objeto de desconfiança quando envolve dinheiro. Que o amor precise se justificar diante da dúvida. Que o luto se transforme em uma disputa por poder, quando deveria ser um espaço de proteção e continuidade.
Cuidado é trabalho – e dos mais desvalorizados
A teórica feminista Silvia Federici (2019) já dizia: o cuidado é trabalho. É produção de vida. E, no entanto, é tratado como se fosse nada — porque é feito por mulheres. Nancy Fraser (2017) também alerta: a separação entre o mundo produtivo e o mundo reprodutivo só reforça desigualdades.
Na prática, quem cuida é quem se torna descartável. Basta um pedido judicial, uma alegação genérica de alienação, uma estratégia processual — e tudo o que foi feito é colocado sob suspeita. O afeto vira “obstáculo”. A presença vira “impedimento”. A mulher que cuidou vira a mulher que atrapalha.
A justiça com os olhos vendados para o afeto
No caso de Marília, a disputa escancarou algo ainda mais doloroso: quando uma mãe morre, ela não leva apenas o seu corpo — leva também a estabilidade que construiu ao redor da criança. E, às vezes, essa estabilidade é ameaçada não por desconhecidos, mas por quem nunca esteve presente antes e agora reivindica o papel de protagonista.
É por isso que o Conselho Nacional de Justiça criou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (CNJ, 2021). O documento orienta que juízas e juízes analisem o contexto social, afetivo e desigual em que as disputas se dão. Que não ignorem quem cuida. Que não invisibilizem as avós, as tias, as mães de fato.
E se for comigo? O que posso fazer em vida?
Essa história mexe com a gente porque sabemos: poderia ser com qualquer uma de nós. Então, o que podemos fazer para proteger nossos filhos caso algo aconteça?
A. Fazer um testamento, nomeando uma pessoa de confiança para assumir os cuidados.
B. Buscar a guarda unilateral judicial, se o pai é ausente ou negligente.
C. Fortalecer os vínculos da criança com sua rede de apoio.
D. Documentar, sempre que possível, os registros de cuidado: boletins médicos, escola, alimentação, rotina. Isso tudo é prova de amor — e de responsabilidade.
Nada disso garante, por si só, a permanência da criança com quem cuidou. Mas pode ajudar o Judiciário a olhar com mais justiça para o afeto.
Quando uma mãe parte, quem fica?
O caso de Marília Mendonça nos mostra que, muitas vezes, o amor de quem ficou precisa lutar para ser reconhecido. Que o cuidado, embora visível na prática, é invisível no processo. E que nenhuma criança deveria perder duas mães: a que partiu e a que a Justiça decidiu apagar.
O Direito precisa aprender que a maternidade não é só biológica. É também construída. Vivida. Entregue. E quem cuida tem direito a continuar cuidando.
Que nenhuma criança perca o chão duas vezes. Que o luto não seja agravado pela injustiça. E que o amor — esse amor de quem cuida — seja, finalmente, reconhecido como Direito.
Por fim, este é o recado que deixamos: de mães para mães, de advogadas para cidadãs. Quem cuida não pode ser descartada. Quem cuida precisa ser protegida.
Referências
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 24 jun. 2025.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 24 jun. 2025.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 24 jun. 2025.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/Protocolo_CNJ_genero_2021.pdf. Acesso em: 24 jun. 2025.
CNN BRASIL. Entenda a disputa judicial entre a mãe de Marília Mendonça e Murilo Huff. 24 jun. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br. Acesso em: 24 jun. 2025.
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas. São Paulo: Elefante, 2019.
FRASER, Nancy. Fortunas do feminismo: do capitalismo gerencial à crítica do neoliberalismo. São Paulo: Boitempo, 2017.
TERRA. Mãe de Marília Mendonça chama pedido de guarda do neto de desumano. 24 jun. 2025. Disponível em: https://www.terra.com.br. Acesso em: 24 jun. 2025.