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Empreender por liberdade ou por falta de opção? O que está por trás do empreendedorismo feminino no país

Foto: Deuzemar Ferreira

Empreender, para muitas mulheres brasileiras, é sinônimo de autonomia, estabilidade financeira e flexibilidade na rotina. O número de mulheres que comandam pequenos negócios cresce ano após ano. Segundo o Sebrae, elas já são maioria entre os empreendedores do país. Mas essa maioria ainda enfrenta barreiras profundas: faturam menos, têm menos acesso a crédito e acumulam múltiplas jornadas. Para 55% delas, empreender não foi uma escolha, foi uma necessidade.

Apesar da presença expressiva nos pequenos negócios, apenas 17% das empresas brasileiras são lideradas por mulheres, segundo levantamento da consultoria Talenses (2025). E dessas lideranças, 90% são de pessoas brancas. Mulheres com filhos, em especial, enfrentam ainda mais obstáculos para chegar aos cargos de decisão, de acordo com o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Empreender é libertador?

Foto: Cortesia à Eufêmea

A ideia de que abrir o próprio negócio significa liberdade precisa ser revista, segundo Kary Coimbra, doutora em Políticas Públicas e professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Para ela, essa associação reflete mais um discurso neoliberal do que uma realidade concreta.

“Essa ideia de empreendedorismo como liberdade é um discurso neoliberal da lógica capitalista. […] Na prática, o que nós percebemos é que a estrutura precarizada de trabalho permanece”, afirma.

Kary explica que o desejo de ser “dona do próprio negócio” atrai tanto homens quanto mulheres, mas os caminhos que cada grupo percorre são distintos. “No caso dos homens, nós vamos ter uma atuação muito significativa na plataformização do trabalho, como motoristas de aplicativo ou entregadores”, pontua.

Gênero, trabalho e os papéis socialmente atribuídos

As mulheres, em sua maioria, concentram-se em setores como beleza, moda e alimentação. Para a pesquisadora Kary Coimbra, essa divisão não é aleatória, ela nasce da socialização de gênero.

“Desde pequenas, as mulheres são ensinadas a ter mais autonomia, a organizar ideias, planejar e executar. Isso é historicamente construído”, aponta.

Mesmo quando se atribui às mulheres uma suposta vocação empreendedora, os espaços mais valorizados da liderança seguem ocupados, majoritariamente, por homens. “A atividade gerencial, principalmente na prestação de serviços, ainda é mais aceita quando exercida por homens”, observa.

O recorte de classe e raça aprofunda essas desigualdades. Segundo Kary, embora o discurso da autonomia impacte a todos, é a base da pirâmide — formada por mulheres negras e periféricas — que mais sofre com os efeitos da necessidade de empreender.

A dificuldade de acesso ao crédito é um dos maiores obstáculos. “É comum que uma mulher que vende produtos de beleza, por exemplo, queira expandir o negócio. Mas, ao procurar um banco, encontra barreiras: não tem renda formal, nem estabilidade ou patrimônio”, explica.

“Ela vive em situação vulnerável, usa transporte público, mora em áreas marginalizadas. Tudo isso se transforma em entrave real para empreender”, diz.

Mulheres estão em desvantagens

Para Kary Coimbra, mesmo as políticas públicas voltadas ao empreendedorismo ainda deixam de alcançar quem mais precisa. Um exemplo é o Pronampe, criado em 2020, que inicialmente não previa recortes específicos para mulheres, pessoas negras, com deficiência ou de baixa renda.

“O PL 1883/2021 tentou corrigir isso, destinando 25% dos recursos a esses grupos. Foi aprovado na Câmara, mas está parado no Senado. As iniciativas surgem, mas esbarram na burocracia”, critica.

Kary reforça que a desigualdade no mercado de trabalho tem raízes estruturais numa sociedade patriarcal e racista que limita mulheres desde a infância. “Meninas são ensinadas a cuidar. Meninos, a explorar.”

A maternidade, segundo ela, ainda é vista como entrave. “Há assédio, pressão para que não engravidem, medo de perder o emprego. E a sobrecarga doméstica, muitas vezes invisibilizada, adoece”enfatiza.

“Essas mulheres já entram no mercado em desvantagem. Não é falta de competência, é excesso de carga. Elas não largam do mesmo ponto que os homens. E isso gera burnout, ansiedade e depressão”, afirma. Na avaliação da pesquisadora, igualdade de oportunidades só será possível com mudanças profundas, como creches públicas, transporte digno, ampliação da licença-paternidade e, sobretudo, uma nova compreensão sobre o que é ser mulher em uma sociedade patriarcal.

Empreender por escolha

Foto: Cortesia à Eufêmea

Para muitas mulheres, o empreendedorismo nasce da exclusão no mercado de trabalho. Para outras, é uma escolha consciente por autonomia e propósito. É o caso de Deuzemar Ferreira, educadora financeira, que deixou o setor corporativo em busca de ter outro modelo de vida.

“No mercado corporativo, não existe estabilidade, o que existe é previsibilidade de renda. Quando percebi que podia ser mais do que aquilo, entendi que precisava mudar”, conta.

A virada veio após um período de estagnação. “Chegar aos 30 anos e me sentir perdida, sem propósito, era cruel demais. Me perguntava: ‘A vida é só isso mesmo?’ Não queria passar o resto da vida funcionando como uma máquina programada.”

Apesar de ter feito uma escolha, Deuzemar não romantiza a jornada. “Empreender, especialmente sendo mãe, é desafiador. O maior peso é a culpa materna misturada com a necessidade de cuidar de mim mesma”, diz. “Conciliar o trabalho com as tarefas de mãe, esposa, dona de casa e estudante é muito difícil. Moramos longe da família e a falta de rede de apoio pesa”, desabafa.

No caso de Deuzemar, o empreendedorismo surgiu não por urgência financeira, mas como um movimento de consciência. “Foi o reconhecimento da minha força, da minha capacidade de ser livre, de fazer escolhas com sentido”, afirma.

Para ela, empreender é também um processo de fortalecimento pessoal, mas também há desafios. “Empreender é se desenvolver, ganhar voz. Existe apoio — o Sebrae, por exemplo, faz um trabalho importante —, mas ainda esbarramos na desigualdade de gênero, nas questões culturais e na sobrecarga que recai sobre as mulheres.”

Criando acesso e removendo barreiras estruturais

Foto: Cortesia à Eufêmea

Se algumas mulheres empreendem por necessidade e outras por propósito, há também aquelas que se dedicam a abrir caminhos para as demais. É o caso de Marcela Fujiy, fundadora e CEO da Be.Labs, uma aceleradora voltada exclusivamente a negócios liderados por mulheres.

Após viver 12 anos na Suécia, Marcela voltou ao Brasil e se deparou com a diferença entre realidades. “Entendi o tamanho do abismo que separa as mulheres daqui das condições mínimas para empreender e prosperar”, relata.

“A urgência veio disso: de perceber que as mulheres estavam, sim, empreendendo, mas sem acesso aos instrumentos básicos que garantem crescimento e sustentabilidade”, continua.

A Be.Labs trabalha com uma abordagem interseccional e enxerga o empreendedorismo como parte de uma política de desenvolvimento econômico. Para Marcela, essas mulheres não estão apenas tentando vender um produto; estão também cuidando dos filhos, de parentes idosos ou conciliando outro trabalho para garantir o sustento.

Ela destaca que os principais entraves são o acesso ao crédito, a ausência de uma rede estratégica e uma formação que não dialoga com a realidade das empreendedoras. “Empreender, para essas mulheres, não é uma escolha romântica. É, muitas vezes, a única alternativa viável.”

Inovação com escuta, território e realidade

Marcela critica a romantização do empreendedorismo feminino e afirma que transformar o discurso de superação em narrativa de sucesso, sem mencionar as barreiras reais, é desonesto. “O empoderamento que defendemos vem junto com dados, política pública, investimento e escuta real.”

O recorte de raça, território e maternidade, segundo ela, precisa estar no centro da discussão.

“Uma mulher negra, periférica, mãe solo, no interior do Maranhão ou no semiárido do Piauí começa de um lugar muito diferente de uma mulher branca, de classe média, em São Paulo.”

Entre os principais aprendizados, Marcela destaca que as empreendedoras não precisam ser ensinadas a empreender. “Elas sabem o que estão fazendo. O que precisam é que as barreiras sejam removidas: crédito, rede, acesso ao mercado”, cita.

Essa visão deu origem ao Furacão.AI, uma inteligência artificial gratuita, treinada com a realidade das mulheres empreendedoras do Brasil. “É uma ferramenta que entende as dores de quem está empreendendo com orçamento apertado e tentando fazer tudo ao mesmo tempo. Democratizar o acesso à inovação é isso: criar soluções que falem a língua delas.”

Para Marcela, a transformação passa por uma mudança de perspectiva e mais oportunidades. “Essas mulheres não precisam de salvadoras. Precisam de acesso, oportunidade e de alguém que acredite nelas antes mesmo que o mercado acredite.”

Foto de Rebecca Moura

Rebecca Moura

Jornalista formada pela Universidade Federal de Alagoas e colaboradora no portal Eufêmea, conquistou o primeiro lugar no Prêmio Sinturb de Jornalismo em 2021. Em 2024, obteve duas premiações importantes: primeiro lugar na categoria estudante no 2º Prêmio MPAL de Jornalismo e segundo lugar no III Prêmio de Jornalismo Científico José Marques Melo.