Aos 16 anos, Marina* iniciou um relacionamento que, com o tempo, se tornaria um ciclo silencioso de dor. O que começou como uma paixão intensa logo se transformou em uma convivência marcada pela dependência química do parceiro. As marcas deixadas pela convivência com a dependência química ultrapassaram o campo emocional. Segundo Marina, as consequências se estenderam por anos: silenciosas, mas devastadoras.
Ela lembra que o primeiro sinal claro do alcoolismo surgiu no próprio dia do casamento: o companheiro chegou visivelmente alterado, com um cantil no bolso do paletó. Durante quase uma década, Marina conviveu com recaídas, promessas de mudança e frustrações. A rotina se deteriorava à medida que o consumo aumentava, inclusive durante o expediente. A empresa precisou intervir, e ele chegou a ser internado e a frequentar o Alcoólicos Anônimos.
“Passou a fazer reuniões, mas, nesse ápice, praticamente só restaram dívidas de bares. Porque o adicto é assim: pode faltar alimento em casa, mas ele precisa manter a imagem de bom moço e pagar todos os bares”, conta à reportagem.
O fim veio com a traição. Quando decidiu se separar, fez um acordo: ele ficaria no apartamento por um tempo e depois cederia o espaço para que Marina morasse com os filhos. “Na cabeça dele, se eu não tivesse onde ir, acabaria voltando. Mas eu saí mesmo assim, só com as crianças e as roupas do corpo. Nunca voltei para o apartamento porque ele colocou outra pessoa lá”, disse.
Sozinha com dois filhos pequenos, precisou reaprender o que era liberdade. “O que parecia o fim me forçou a caminhar”, reforça. Nomear o momento exato em que a dependência e a violência passaram a dominar sua vida não é simples.
“É como um redemoinho. Quando você se percebe, já está nele. Nem sabe quando caiu. Só está lá. E os momentos ruins se acumulam de tal forma que você já não distingue se o pior foi no começo, no meio ou no fim”, afirma. Hoje, ela reconhece ter vivido um processo de codependência.
“Quando você não trata suas feridas, busca do jeito errado. A gente acaba escolhendo pessoas com o mesmo perfil de caráter daquelas com quem conviveu no passado. É como uma necessidade de cuidar, de repetir. E isso não é culpa, é um vício emocional”, enfatiza.
As consequências de viver em um ciclo marcado pela dependência química do parceiro não ficaram restritas às emoções. Segundo Marina, os efeitos se estenderam por anos e atingiram também o corpo. Ela relata ter enfrentado depressão profunda, dificuldade em confiar, crises de ansiedade e dias em que o sofrimento era tão intenso que até respirar parecia impossível.
Além disso, ela também citou outros problemas de saúde: alopecia, oscilações de peso, perda de autoestima, endometriose profunda, cistos, hipertensão e até um teratoma no coração. “Meu corpo gritava”, desabafa.
A dor que continua em outras vozes

A história de Marina não é isolada. O convívio com parceiros em uso de substâncias, marcado por manipulação, recaídas e violência emocional, também fez parte da trajetória de Andresa Cavalheri, 48 anos. Ela conheceu o ex-marido dentro de uma igreja. Desde o início, ele revelou que era adicto e havia acabado de sair de uma internação. Mas, naquela época, Andresa não compreendia o que isso realmente significava. “Eu não sabia nada sobre a doença”, disse.
Movida pela fé e pela crença na recuperação, decidiu apostar na relação. Mas o casamento durou apenas três meses. A primeira recaída veio logo em seguida por outra em menos de um mês. Apesar do curto tempo de convivência, os impactos emocionais foram profundos.
“Eles têm um grande poder de manipulação, fazendo com que a gente se sinta culpada pelo problema deles. Isso nos destrói por dentro. Até que a ficha cai e você percebe que não adianta tentar ajudar quem não quer ser ajudado”, revela.
Segundo Andresa, o maior desafio tem sido reconstruir a própria imagem. “O adicto não mede palavras para te ofender. Ele destrói sua imagem. Faz você se sentir a pior das mulheres.”
A decisão pelo divórcio veio por medo. Temia as dívidas, os traficantes, a instabilidade emocional e até possíveis agressões. “Foi o medo, o desespero e a falta de esperança de que ele saísse daquela vida.”
Apesar de contar com uma rede de apoio formada por familiares, amigos e membros da igreja, ela admite que o processo emocional ainda é desafiador. “Ainda me sinto muito só. E isso não é fácil de lidar.”
Hoje, Andresa faz terapia e participa de grupos de cura espiritual. Reconhece avanços, mas não esconde as feridas. “O emocional fica destruído. Essa experiência impactou a minha vida e acredito que vai impactar para sempre”, ressalta.
Ainda assim, ela aponta uma virada: passou a cuidar da própria saúde mental e a se colocar em primeiro lugar. “Aprendi que sou a pessoa mais importante da minha vida. E que, por mais que eu ame alguém, não posso permitir ser maltratada, desrespeitada ou agredida”, afirma.
Afeto que se transforma em sobrecarga emocional

As histórias de Marina e Andresa ilustram uma dinâmica comum em relações marcadas pela dependência química: o afeto e o desejo de ajudar se confundem com sofrimento contínuo, apagamento emocional e perda de identidade.
Para compreender os impactos desse tipo de vivência, a psicóloga Anne Rafaele Telmira Santos, gestalt-terapeuta, explica que muitas mulheres assumem, inconscientemente, o papel de “salvadora”, uma postura que costuma ter raízes profundas.
“É comum que essas mulheres tenham vivido, desde cedo, experiências de responsabilização afetiva. Foram ensinadas a cuidar do outro em detrimento de si mesmas: da casa, dos irmãos, dos pais. Em muitos casos, cresceram em vínculos familiares disfuncionais, nos quais afeto se confundia com sacrifício”, reforça.
Segundo ela, esse comportamento é alimentado tanto pela cultura quanto pelos próprios relacionamentos. “Culturalmente, ainda há a idealização da mulher como aquela que deve manter a família unida e curar com amor. Esse padrão faz com que a dependência emocional do parceiro à substância se transforme também em uma dependência da mulher ao papel de resgatá-lo.”
Sinais da codependência emocional
A psicóloga também alerta que a codependência emocional costuma passar despercebida, pois muitas vezes se disfarça de amor, lealdade ou compromisso. Nesse cenário, a mulher reorganiza toda a sua vida em torno do parceiro, negligenciando as próprias necessidades, tendo dificuldade para impor limites e acreditando que está apenas sendo fiel ao relacionamento.
“A dedicação excessiva é vista como uma virtude, enquanto o sofrimento passa a ser interpretado como uma forma de demonstrar amor.” Com o tempo, essa entrega leva à anulação da própria identidade.
“Ela se abandona, vive em função de tentar conter crises, evitar recaídas e proteger a relação. Isso a coloca em estado de alerta constante, o que provoca esgotamento emocional, ansiedade, depressão, sintomas psicossomáticos e, muitas vezes, despersonalização.”
Segundo Anne, geralmente há um ponto de ruptura — uma recaída crítica, uma agressão, uma ameaça direta aos filhos ou um colapso emocional — que faz a mulher perceber que está adoecendo. Mas mesmo nesse limite, romper com o ciclo nem sempre é fácil. “Muitas acreditam que, sem aquele relacionamento, perderão seu valor ou propósito.”
O silêncio como defesa
Em muitos casos, o silêncio é a forma que essas mulheres encontram para suportar a dor. Segundo Anne, ele nasce da vergonha de viver uma realidade distante da idealizada, da culpa por não conseguir “salvar” o outro e da esperança de que, com amor, ele vá mudar.
“Chamamos isso de ‘esperançar’: um anestésico emocional que adia a dor e sustenta a permanência em relações marcadas por sofrimento.”
Esse silenciamento, afirma a terapeuta, não é sinal de fraqueza, mas um mecanismo de defesa frente à violência emocional e à dificuldade de reconhecer o próprio adoecimento.
“É comum que a mulher se isole, se afaste de si e dos outros, vivendo exclusivamente em função do outro. Muitas vezes, ela não percebe que também precisa de cuidado.”
Romper esse ciclo começa com o reconhecimento da dor e o acolhimento primeiro de si, depois da rede ao redor. O apoio pode vir da família, amigos, espaços religiosos ou profissionais, desde que com escuta sem julgamento.
Entre os sinais de alerta para o adoecimento emocional estão a perda de interesse por atividades que antes faziam sentido, o abandono do autocuidado, o isolamento, a irritabilidade e a sensação constante de esgotamento.
“O acompanhamento psicológico pode ser um espaço seguro para reconstrução emocional e resgate da identidade”, conclui Anne.
*Nome fictício para proteger a identidade da entrevistada