A violência doméstica não é um problema restrito à relação entre agressor e vítima direta. As crianças que vivem em lares marcados por agressões físicas, psicológicas e emocionais também sofrem consequências profundas, mesmo quando não são alvo direto das agressões. O ambiente hostil atinge seu desenvolvimento, compromete a formação de vínculos afetivos e pode perpetuar ciclos de violência de geração em geração.
A psicóloga clínica Luiza Siqueira disse que quando uma criança cresce em um ambiente onde há violência de gênero, não apenas presencia o sofrimento entre os adultos, mas também aprende silenciosamente sobre o que significa ser homem ou mulher e como funcionam os relacionamentos.
“Se a criança observa repetidamente um pai em postura agressiva e uma mãe em situação de fragilidade, pode entender que esse é o modelo ‘normal’ de convivência. Isso se reflete no futuro: meninos podem acreditar que precisam ser autoritários para ter valor, enquanto meninas podem aprender que devem silenciar para manter vínculos”, explica.
Medo, insegurança e confusão

Para a psicóloga, a violência quebra a sensação de segurança essencial ao desenvolvimento. No lugar da proteção, surgem medo, insegurança e confusão. Esse impacto acompanha a vida adulta e aumenta a chance de repetir ou tolerar padrões abusivos.
Segundo Luiza, os efeitos mais comuns observados nessas crianças incluem medo constante, ansiedade, insegurança, baixa autoestima e dificuldade em confiar nas pessoas. Muitas desenvolvem sentimentos de culpa, como se fossem responsáveis pelo que acontece em casa.
“No comportamento, podem mostrar-se mais agressivas ou, ao contrário, muito retraídas, com dificuldades de concentração na escola e instabilidade nas relações com colegas e adultos”, afirma.
A psicóloga também distingue os efeitos entre crianças que apenas presenciam a violência e aquelas que são vítimas diretas. Segundo ela, as que apenas presenciam já vivem em estado de alerta constante, com vulnerabilidade a transtornos de ansiedade e depressão.
“As que também são alvo direto das agressões costumam apresentar efeitos ainda mais severos, com maior prevalência de transtornos de conduta, instabilidade emocional, diminuição do autoconceito e dificuldades na formação de vínculos afetivos duradouros”, explica.
Sinais de alerta e caminhos para o cuidado
Entre os sinais que pais, professores e profissionais de saúde devem observar estão isolamento, queda no rendimento escolar, tristeza persistente, irritabilidade, alterações no sono e na alimentação, além de comportamentos agressivos ou retraídos.
Para Luiza, o acompanhamento psicológico precisa oferecer um ambiente seguro e acolhedor, com recursos lúdicos que ajudem a criança a expressar emoções e fortalecer a autoestima. Outro ponto essencial é a participação de cuidadores protetivos. “O objetivo não é apagar a experiência, mas possibilitar que a criança ressignifique sua história e construa novas referências de afeto, respeito e proteção”, afirma.
Cotidiano de atendimentos no Judiciário

No 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Alagoas, a assistente social Monique Emanuelle de Souza Santos lida diariamente com situações em que a violência doméstica reverbera nos filhos das vítimas.
De acordo com Monique, os sinais podem ser diretos ou indiretos. Diretamente, em situações de agressões extensivas aos filhos ou que os atingem por estarem próximos das mães — notadamente quando ainda são bebês. Indiretamente, quando a criança presencia a violência sofrida pela mãe.
“Essa exposição gera impactos emocionais intangíveis, que se revelam no comportamento, na forma de se relacionar e no desempenho escolar”, relata.
Os atendimentos revelam que muitas mães chegam preocupadas com mudanças bruscas nos filhos: aumento da agressividade, reprodução de comportamentos violentos, retração social, resistência ao convívio com o pai e queda no rendimento escolar.
“O abandono material e afetivo, embora frequentemente anterior à situação de violência doméstica, costuma ser recrudescido após a imposição das medidas protetivas e pode causar repercussões para esses filhos”, acrescenta.
Quando não há acompanhamento especializado em andamento, a equipe multidisciplinar do Juizado realiza encaminhamentos para atendimento psicológico, mapeando a rede de apoio disponível.
O ciclo da violência que atravessa gerações
Embora o Juizado não disponha de estudo interno específico sobre a reprodução do ciclo da violência, Monique conta que já foram observados casos de replicação de comportamentos agressivos entre irmãos e de histórico de convivência com violência nas famílias de origem, tanto das mulheres quanto dos homens atendidos.
O Juizado conta com equipe formada por duas assistentes sociais e duas psicólogas, além de estagiários. Mas a demanda é alta, e as limitações estruturais dificultam o acompanhamento contínuo. “As políticas públicas correspondentes, para as quais encaminhamos as crianças, costumam estar sobrecarregadas e muitas vezes não possuem profissionais de psicologia ou vagas escolares disponíveis, especialmente para crianças pequenas”, relata.
Apesar de a abordagem ser centrada nas mães, elas funcionam como principais guardiãs e facilitadoras para identificar as demandas dos filhos. “A avaliação aprofundada das necessidades das crianças só acontece quando elas chegam aos equipamentos sociais”, explica.
Desde 2023, o Juizado conta com o Programa João e Maria, implantado pela juíza Soraya Maranhão. A iniciativa visa dar concretude à previsão legal de atendimento prioritário a mulheres com filhos pequenos, assegurando atenção especial às crianças na primeira infância.
Nos atendimentos, a magistrada encaminha a mulher para avaliação pela equipe multidisciplinar, que identifica demandas e faz os encaminhamentos necessários para serviços de saúde, educação e assistência.
Um programa voltado à primeira infância

Na avaliação da juíza Soraya Maranhão, titular do 1º Juizado da Mulher de Maceió, a invisibilidade das crianças nos processos de violência doméstica exigia uma resposta institucional. Foi nesse contexto que nasceu o Programa João e Maria.
“As medidas protetivas sempre tiveram foco exclusivo na mulher. O João e Maria foi criado para garantir proteção integral também às crianças, especialmente de zero a seis anos, fase crucial do desenvolvimento humano”, afirma.
O programa tem como porta de entrada a medida protetiva concedida à mãe. A partir dela, a mulher é encaminhada à equipe multidisciplinar, que realiza escuta qualificada, identifica demandas e formaliza encaminhamentos à rede pública, como a SECRIA, o Conselho Tutelar e o CREAS. O acompanhamento se estende durante toda a vigência da medida, abrangendo saúde, educação, assistência social, habitação e trabalho.
“Fortalecer a primeira infância”
Até julho de 2025, o João e Maria havia atendido 392 mulheres encaminhadas por medida protetiva. Dessas, 232 eram mães, muitas com mais de um filho na primeira infância. No total, 356 crianças foram beneficiadas com escuta especializada, encaminhamentos para serviços públicos e acompanhamento contínuo.
Os desafios, no entanto, permanecem: sobrecarga da rede de proteção, fragmentação de políticas, falta de informações completas nos processos e barreiras sociais que dificultam a adesão das mães, como mudanças de endereço, retorno ao agressor ou desistência do processo.
Ainda assim, a juíza reforça a importância da iniciativa. Segundo ela, muitas crianças vivem sob o impacto direto ou indireto da violência doméstica e, mesmo sem expressar verbalmente, sentem profundamente a tensão do ambiente e os traumas vividos pela mãe.
“O João e Maria atua de forma preventiva, promovendo proteção integral desde os primeiros anos de vida. Fortalecer a primeira infância é investir em um futuro mais saudável e seguro para toda a sociedade”, afirma.
As consequências legais para os agressores
Do ponto de vista jurídico, a violência doméstica que atinge crianças também tem desdobramentos importantes. O promotor Gustavo Arns, coordenador do Núcleo de Defesa da Infância e Juventude do Ministério Público, explica que a proteção se apoia principalmente na Lei nº 14.344/2022, conhecida como Lei Henry Borel.

A lei prevê medidas protetivas como afastamento do lar, restrição do porte de armas, proibição de contato e aproximação da vítima e familiares, suspensão ou restrição do direito de visitas e comparecimento a programas de reeducação. Além disso, o agressor pode responder criminalmente por delitos como lesão corporal, maus-tratos e estupro de vulnerável, podendo inclusive sofrer suspensão ou perda do poder familiar, conforme previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.
“O Ministério Público atua de maneira célere e articulada, acionando a rede de proteção formada por conselhos tutelares, assistência social, órgãos de saúde, educação e segurança pública, a fim de cessar o risco imediato”, afirma.
Também cabe ao MP promover ações judiciais para aplicação de medidas protetivas e, quando necessário, requerer a destituição do poder familiar. No campo penal, pode oferecer denúncias contra os agressores e pedir medidas cautelares, como prisão preventiva ou temporária.
Lei reconhece a criança como vítima mesmo sem agressão direta
Segundo Arns, mesmo quando a violência não é direcionada diretamente à criança, a lei a reconhece como vítima. “A criança exposta à violência doméstica, ainda que indiretamente, sofre impactos psicológicos e sociais e, por isso, deve receber todas as medidas protetivas previstas na Lei Henry Borel e no Estatuto da Criança e do Adolescente.”
Entre as dificuldades enfrentadas pelo sistema de Justiça estão a subnotificação das ocorrências, a ausência de protocolos claros de atendimento e a carência de políticas públicas estruturadas. “Esses fatores dificultam a atuação integrada do sistema de Justiça e da rede de proteção”, pontua.
Para ele, avanços legislativos e de políticas públicas ainda são urgentes: é preciso maior prioridade orçamentária para a infância, fortalecimento dos conselhos tutelares e implementação de políticas permanentes de prevenção.