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Do luto ao sonho: Mariana transformou a perda da mãe em um ateliê de restauração

“Perder minha mãe foi o momento mais devastador da minha vida. Ela já ocupava também o lugar do meu pai, que havia falecido, e sua partida me tirou o chão. O câncer de mama a fez definhar, mas até o fim eu acreditava na recuperação. Foi nesse luto que nasceu o ateliê, um sonho antigo que eu ainda não me sentia pronta para realizar.” O relato é da historiadora e restauradora Mariana Marques, criadora do Ateliê Mari Restaura.

Entre a arte e a memória da mãe

Foto: Mariana Marques/Cortesia à Eufêmea

Mariana cresceu em uma família humilde, na periferia de Maceió. Filha de uma trabalhadora doméstica e de um enfermeiro que também atuava como policial, ouviu dos pais, desde cedo, que o estudo seria o maior legado possível.

Sem opções de cursos ligados às artes em Alagoas, escolheu cursar História na Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Durante a graduação, percebeu que seu caminho estava na interseção entre História e Arte. Mudou-se para Minas Gerais, onde cursou Conservação e Restauração de Bens Culturais Imóveis, conciliando estudo e trabalho em meio a dificuldades financeiras, sempre com o apoio incondicional da mãe.

A relação entre as duas era intensa. A mãe, natural de Correntes (PE), deixou o interior ainda jovem para trabalhar como doméstica em Maceió. Apesar da ausência de afeto em sua própria família, conseguiu romper padrões e construiu com os filhos uma relação marcada pelo cuidado.

“Ela dizia que nunca recebeu um abraço da própria mãe. Mas foi exatamente o oposto conosco: sempre carinhosa, atenciosa e presente na minha vida e na do meu irmão. Desde pequena, tive nela a minha maior referência”, conta, emocionada.

A dor que virou ponto de partida

Após concluir a graduação em História e em Conservação e Restauração, Mariana ainda alimentava o desejo de ter um ateliê, mas a responsabilidade envolvida a fazia adiar o sonho. “No ano passado, cheguei a dizer: ‘Daqui a cinco anos eu abro o meu ateliê.’”

A decisão, no entanto, veio no momento mais difícil. A mãe faleceu em março, e no mesmo mês Mariana iniciou os trâmites para formalizar o negócio. Ela admite que, no começo, não entendia o porquê da pressa. “Eu pensava: por que estou fazendo isso agora, se tenho tanta coisa para resolver? Hoje tenho certeza de que foi um direcionamento espiritual, uma forma de me preparar para lidar com a perda.”

Poucos dias após a morte da mãe, já estava instalada no novo espaço. As jornadas iam das 7h às 23h. O ateliê se tornou refúgio e proteção emocional. “Lógico que não elimina a dor, mas ajudou a transformá-la em algo que me mantém de pé.”

Restauração como afeto e futuro

Foto: Arquivo Pessoal

O processo também trouxe cura. “Passei a enxergar a restauração não apenas como técnica, mas como cuidado e continuidade do amor que sempre troquei com minha mãe.”

Durante a formação, Mariana sentiu a ausência de conteúdos sobre cultura afro e percebeu o distanciamento da conservação em relação à maior parte da população. Essa inquietação inspirou a criação de um espaço inclusivo, acessível e com valores justos.

“Restaurar objetos é também restaurar memórias e afetos”, resume. Já restaurou esculturas entregues por famílias em homenagem a avós, peças de devoção e outros objetos carregados de recordações. Ver a reação das pessoas ao receberem de volta peças significativas se tornou sua maior motivação.

O desafio, reconhece, continua sendo o financeiro, já que os materiais de restauração exigem alto investimento. Ainda assim, o ateliê se consolidou: hoje conta com dois auxiliares: Mattheus Dué e Ana Letícia Póvoa. Além disso, o ateliê conta com o apoio do Sebrae e um plano de expansão.

O compromisso com a memória

Mariana lembra de uma promessa feita a si mesma ao se mudar para Minas. “Eu volto. Eu vou e volto, e quando voltar vou restaurar tudo que puder.” Esse compromisso, somado à memória da mãe, continua a impulsionar seu trabalho.

O próximo passo é expandir a estrutura, alcançar novas comunidades e mostrar que a restauração pode ser acessível. Para ela, restaurar é também garantir a permanência das histórias.

“Trabalhar com restauração é também trabalhar com memória. É assegurar que a afetividade permaneça viva nos objetos e nas pessoas que os guardam”, conclui.

Foto: Arquivo Pessoal

No Ateliê Mari Restaura, o trabalho se estende a diferentes tipologias de materiais: esculturas em madeira e gesso, obras de arte em tela, quadros, peças têxteis, além de livros, xilogravuras e outros objetos em papel. Mais do que um espaço de técnica, o ateliê carrega símbolos afetivos.

Logo na entrada, está o emblema africano Sankofa, que representa a filosofia de olhar para o passado para construir o futuro, conceito que Mariana adotou como guia de vida. Entre os objetos mais valiosos do espaço, ela destaca o pé da máquina de costura da mãe, preservado como herança afetiva e memória permanente. “Posso dizer que é o meu maior patrimônio ali”, resume.

Foto: Arquivo Pessoal

O ateliê funciona na Rua Comendador José Geraldo da Silva, nº 101, sala 35, Jacintinho, Galeria Royal, em frente ao Colégio Theonilo Gama.

Foto de Rebecca Moura

Rebecca Moura

Jornalista formada pela Universidade Federal de Alagoas e colaboradora no portal Eufêmea, conquistou o primeiro lugar no Prêmio Sinturb de Jornalismo em 2021. Em 2024, obteve duas premiações importantes: primeiro lugar na categoria estudante no 2º Prêmio MPAL de Jornalismo e segundo lugar no III Prêmio de Jornalismo Científico José Marques Melo.
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