Nas últimas semanas, a pergunta que mais chegou até mim foi: “Você viu que ‘Fulana’ voltou para o agressor?” Não se tratou de um caso isolado; foram várias mulheres retomando o convívio violento. Seria hipocrisia admitir que não senti uma onda de frustração e raiva, especialmente como jornalista que acompanha e noticia, diariamente, os casos mais brutais de violência contra a mulher.
A pergunta nunca vem acompanhada de reflexão, mas de julgamento: “Ela merece apanhar de novo”, “Ela não tem vergonha na cara”… Ao reorganizar meus pensamentos, senti a necessidade de escrever este texto, que vai chegar tanto a quem julga quanto a quem voltou para a relação. Tenho certeza disso.
De forma geral, sem analisar a vida de cada vítima (porque cada uma tem a sua história), é preciso dizer que essa “escolha errada”, muitas vezes, não é sobre escolher voltar para o abuso. O retorno acontece porque, para algumas mulheres, o trauma estreitou tanto as possibilidades que só resta um caminho: voltar. Ou porque a sociedade, silenciosamente, as empurrou de volta.
Mas como assim?
Imagine uma mulher que cresceu acreditando que amor era controle, ciúme e agressão. Que passou anos em uma relação violenta (e aqui vale lembrar: não é todo dia que o agressor é agressor). Ela decide se separar, mas encontra o julgamento da família, a incompreensão dos amigos e o peso de recomeçar sozinha.
Para essa mulher, a ideia de começar do zero, somada ao medo de nunca mais ser amada, pode ser mais aterrorizante do que permanecer onde, ao menos, ela já sabe o que esperar. O retorno, nesses casos, é muito mais um mecanismo de sobrevivência do que uma escolha por amor. Agora, imagine essa mesma mulher sendo também mãe (tudo se torna mais complexo).
Existem amarras que restringem as opções reais de saída: materiais, emocionais, legais e simbólicas. Do meu lugar, é fácil julgar. Afinal, não estou na pele dela, não carrego a sua história.
Vocês já ouviram falar em vínculo traumático? O termo “Síndrome de Estocolmo” aparece em muitos debates, mas, no contexto da violência doméstica, falamos sobretudo desse vínculo: laços formados na alternância entre afeto e agressão, reforçados por recompensas intermitentes. O cérebro aprende a associar pequenos gestos de carinho ao alívio da dor. A esperança de estabilidade vira reforço poderoso. Não é “amor cego”; é condicionamento sob ameaça.
Uma amiga me disse algo que nunca esqueci: “Quem disse que a mulher que decide voltar também não está sendo vítima de mais uma violência?” Porque é exatamente isso: quando ela volta, é sinal de que algo não foi trabalhado. Ela pode estar adoecida, dependente financeiramente, emocionalmente, fragilizada pelo julgamento, paralisada pelo medo de não saber o que fazer sozinha. Também é um sinal de uma falha da sociedade, entende? Isso também é uma violência.
Quando vejo ou ouço que uma mulher voltou para o agressor, sinto que um pedaço do mundo desaba dentro dela, e também em cada uma de nós. Não porque ela “quis voltar”, mas porque algo falhou no caminho de proteção que deveria ampará-la. E, talvez, porque algo dentro dela esteja tão marcado e enraizado que a faz acreditar ser esse o único jeito possível de recomeçar.