O 31 de outubro é lembrado hoje como o Dia das Bruxas, mas suas origens são bem mais antigas do que o imaginário das fantasias e das abóboras iluminadas. Essa data remonta às celebrações celtas do Samhain, que marcavam o fim da colheita e o início do inverno, um tempo de recolhimento, de morte simbólica e de recomeço. Era também, segundo antigas tradições, o momento em que os mortos atravessavam o véu entre os mundos para visitar os vivos.
Essa ideia de reencontro entre vivos e mortos foi belamente retratada no filme Viva – A Vida é uma Festa (Disney/Pixar, 2017). Nele, o menino Miguel atravessa o mundo dos mortos para reencontrar seus ancestrais e compreender a importância da memória. Inspirado no Día de los Muertos mexicano, o filme mostra que lembrar é um ato de amor e de continuidade, o mesmo sentido que o antigo Samhain já celebrava. Assim como nas aldeias celtas, onde se acendiam fogueiras e preparavam-se alimentos para receber os espíritos, o filme mostra que o vínculo entre gerações permanece vivo pela lembrança.
Com o avanço do cristianismo, esse rito de comunhão e memória foi reinterpretado. O Dia de Todos os Santos, instituído no século VIII, incorporou parte das antigas práticas pagãs, e a noite anterior passou a ser chamada de All Hallows’ Eve, origem da palavra Halloween. Assim, o que era celebração da vida cíclica se transformou em noite de penitência e vigilância.
A partir do século XV, esse imaginário se misturou às caças às bruxas, que deixaram uma marca profunda na história das mulheres. Como explica Mary Del Priore (2000, p. 35), a figura da bruxa europeia foi o “espelho invertido da santa”: aquela que desafiava o poder do clero, conhecia o corpo e manipulava forças que a Igreja não controlava. A mulher que sabia demais passou a ser vista como ameaça.
Na leitura de Silvia Federici (2017), essas perseguições não foram episódios de histeria coletiva, mas parte de um processo político e econômico de disciplinamento social. A caça às bruxas, diz a autora, foi “a fundação de uma nova ordem baseada na disciplina do corpo e na subordinação da mulher ao trabalho reprodutivo” (p. 188). O fogo que antes aquecia e protegia passou a queimar, e a purificar, pela violência, o que a nova ordem não tolerava.
Margareth Rago (2011) reforça essa leitura ao lembrar que “a bruxa simboliza o corpo que não se enquadra, o corpo que recusa a domesticação” (p. 74). O medo da bruxa, portanto, é o medo da mulher autônoma, da sabedoria não legitimada, do poder que nasce fora das instituições.
O curioso é perceber o quanto o Direito, como instituição moderna, nasce e se fortalece nesse mesmo período histórico em que o corpo feminino passa a ser normatizado. A transição para o mundo moderno exigia controle: da terra, do trabalho e também das mulheres. O que estava em jogo não era a magia, mas o poder.
As fogueiras que queimavam mulheres foram substituídas por formas mais sutis de silenciamento. Hoje, o controle aparece nas sentenças que duvidam da palavra das vítimas, nas decisões que interferem sobre a maternidade e nas estruturas institucionais que ainda resistem em reconhecer a autoridade das mulheres sobre si mesmas.
Refletir sobre o Dia das Bruxas é, portanto, mais do que resgatar uma memória. É compreender que o medo do poder feminino, intelectual, político e jurídico, continua presente, ainda que com novas roupagens. Quando mulheres ocupam espaços de decisão, seja no Judiciário, nas universidades ou na política, não se trata de vingança histórica, mas de restabelecimento de equilíbrio. O que foi negado por séculos não precisa ser gritado, apenas sustentado com presença, competência e consciência.
O 31 de outubro pode ser lido, então, como uma data de resistência e memória. O saber feminino, que um dia tentaram apagar, ressurge em novas formas de presença. E talvez o maior aprendizado desse dia seja justamente esse: não há nada mais revolucionário do que o conhecimento que se recusa a ser queimado.
Referências
DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.
RAGO, Margareth. O corpo exilado: bruxas, santas e loucas. São Paulo: Intermeios, 2011.
TIBURI, Marcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.