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Sobrecarga sensorial não é mimimi: por que o burnout neurodivergente é diferente e como se proteger

Por Ana Paes- Psicóloga/Neuropsicóloga (CRP-15/1965)

Você já sentiu como se seu cérebro fosse um computador com cem abas abertas, todas tocando músicas diferentes e piscando alertas ao mesmo tempo? Sabe aquele momento em que o cheiro do café na mesa ao lado, o zumbido da luz e o toque do telefone se transformam em uma parede de ruído insuportável?

Essa não é uma simples “dor de cabeça” ou “exagero”. Para milhões de mulheres neurodivergentes — como autistas, TDAHs (Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade) e outras condições — essa é a batalha diária contra a sobrecarga sensorial e o som do esgotamento chegando. Por muito tempo, nos disseram que era “frescura” ou “falta de controle”.

Agora, chega. Vamos falar a verdade: a sobrecarga sensorial é real, e ela é a porta de entrada para o burnout neurodivergente, uma exaustão muito mais profunda do que o cansaço que você conhece. Não é frescura; é fisiologia do sistema nervoso.

Burnout não é sempre o mesmo fenômeno

A leitura mais comum de burnout foca no excesso de trabalho: tarefas demais, controle de menos, reconhecimento insuficiente. Faz sentido, mas não esgota o tema. Em quem é neurodivergente, a conta não fecha mesmo quando a carga de tarefas está “ace-dos” no papel. O que esgota é a somatória de microagressões sensoriais e sociais ao longo do dia. A reunião não cansa apenas pelo conteúdo, mas pelo ruído constante, pela luz dura, pelo entra e sai, pela necessidade de “performar” sociabilidade enquanto o cérebro tenta filtrar estímulos. Não é um cansaço subjetivo: é uma resposta de alarme disparada por um ambiente que não considera como esse corpo processa o mundo.

O ciclo da sobrecarga

O dia começa com um nível de energia que parece suficiente. Em poucos minutos, sons sobrepostos, mensagens simultâneas e uma mudança de pauta não comunicada elevam o tônus de vigilância. O corpo entende “risco” e aciona estratégias: contrair muscul atura, prender a respiração, hiperfocar para não perder o fio, camuflar desconfortos para cumprir o papel social. Funciona, por algumas horas. Quando a maré baixa, vêm a irritabilidade, os “apagões” de atenção, a dificuldade de encontrar palavras, a dor de cabeça que não responde a água, a vontade de se esconder. À noite, o sono custa a chegar porque o sistema ainda está em alerta. No dia seguinte, a reserva já amanhece menor. É assim que o ciclo fecha.

Você não “se acostuma” ao que agride seu sensorial. Você apenas aprende a pagar mais caro por dentro.

“Mas eu adoro gente e amo o meu trabalho… por que estou exausta?”

Porque gostar não anula como seu sistema nervoso opera. É possível amar dar aula e, ainda assim, sair drenada por causa de microfones ruins, buzinas, data show barulhento, cheiro de desinfetante, alunos falando em três frentes. É possível amar um congresso e voltar dois dias em silêncio para recompor. O conteúdo nos alimenta; a logística do ambiente define o custo.

Como diferenciar de “cansaço normal”

No cansaço comum, o repouso habitual restaura. No burnout por sobrecarga sensorial, férias barulhentas não ajudam; um fim de semana em shopping pode piorar. O marcador mais confiável é este: quando o ambiente melhora de forma concreta, o corpo melhora de forma previsível. Luz quente em vez de fluorescente; reunião curta e com pauta clara em vez de debate solto; espaço de pausa real em vez de “respira aí e volta”. Se pequenas mudanças externas elevam o desempenho de forma estável, estamos lidando com ajustes, não com “força de vontade”.

O processo: por que seu cérebro não consegue filtrar

A diferença fundamental está na forma como o cérebro neurodivergente processa estímulos. Enquanto o cérebro neurotípico possui um eficiente “porteiro” que diz: “ignore o ruído do ar-condicionado” ou “desligue o foco na textura da camisa”, o cérebro de uma pessoa neurodivergente tem um porteiro que convida todos os estímulos para uma festa barulhenta, 24 horas por dia.

Isso significa que o que para outros é apenas fundo, para essas pessoas é foco. O tato de uma etiqueta na roupa, a fluorescência de uma lâmpada ou a colisão de várias vozes em um happy hour são percebidos com uma intensidade avassaladora. É uma demanda constante de energia mental para ignorar o que o corpo insiste em registrar. E é esse esforço de filtragem que drena o reservatório energético até o zero.

Por que neurodivergentes sofrem mais?

Porque o filtro sensorial é diferente (no autismo) e a autorregulação atencional é diferente (no TDAH). Junte a isso um mundo desenhado para a “média” de estímulos e expectativas sociais implícitas e temos o cenário perfeito para a camuflagem crônica: “dou conta”, mas com um custo crescente. Quando a pessoa tenta resolver apenas com esforço, duas coisas acontecem: o erro aumenta (porque o alarme derruba precisão) e a culpa cresce (“eu deveria aguentar”). Esse binômio — erro + culpa — é combustível de esgotamento.

Cuidado na ordem certa

Intervenção eficaz segue uma lógica: ambiente → corpo → rotina. Primeiro, reduzimos ruído, luz agressiva, cheiros, improvisos. Em paralelo, ensinamos o corpo a desligar o alarme (respiração lenta por minutos, pausas reais, sono com janela estável, alimentação que previne picos e quedas). Com o terreno mais calmo, organizamos a rotina em blocos de foco com pausas curtas e previsíveis. Só então falamos de “produtividade”. Tentar o caminho inverso é o mesmo que pedir performance de um músculo inflamado.

Dois quadros que se confundem (e como não errar)

Pessoas com TDAH também entram em burnout, mas por uma via adicional: a mente “pula” entre estímulos e evita tarefas muito longas ou pouco gratificantes. Sem estrutura externa, o dia vira um zigue-zague cansativo. No autismo, o eixo não é tédio; é dor sensorial e ambiguidade social. Em ambos, culpa piora tudo. A pista mais segura é perguntar: o que melhora mais rápido — clarear o ambiente e as regras, quebrar a tarefa em passos minúsculos ou receber validação e reparar um vínculo? A resposta aponta por onde começar.

Scripts que abrem caminho (curtos, diretos, respeitosos)

“Preciso de 5 minutos de pausa; volto com mais qualidade.”
“Para essa mudança, me envie a nova sequência A → B → C e o critério de pronto.”
“Em reuniões de 25 minutos eu entrego melhor. Posso propor esse formato?”

Quando é hora de pedir ajuda

Se “apagões” de atenção viram regra, se o sono não volta mesmo com higiene básica, se a dor corporal persiste ou se surgem pensamentos de autodesvalia, é momento de apoio especializado. Terapia com foco em regulação, técnicas de manejo sensorial, eventualmente medicação para sintomas-alvo — tudo isso soma quando a base ambiental está ajustada.

O que líderes e famílias precisam saber

Ninguém produz com um alarme tocando ao fundo. Acomodar sensorialmente não é privilégio; é condição de partida para que a pessoa entregue aquilo que já sabe fazer. A cobrança de resultado continua, só desloca o foco: menos “performance social”, mais clareza de processo. Se o ajuste melhora o desempenho de forma estável, deve permanecer.

Para fechar: um corpo que merece cooperação

Não existe vida adulta sem esforço. Mas existe esforço que nos constrói e esforço que nos consome. O primeiro conta com o corpo; o segundo o obriga a se calar. O caminho do burnout neurodivergente se encurta quando paramos de negociar com o óbvio: ambientes importam. Quando luz, som e previsibilidade se alinham, o cérebro sai do modo alarme, a mente volta a pensar, a emoção volta a caber. Não é milagre; é engenharia de cuidado.

E você? Qual é o seu principal gatilho sensorial? Compartilhe nos comentários e inspire outras mulheres que também estão nessa jornada!

Foto de Ana Paes

Ana Paes

Psicóloga e neuropsicóloga, com mais de 23 anos de atuação clínica. Escritora e pesquisadora das adaptações da TCC e da Terapia do Esquema para pessoas neurodivergentes, especialmente mulheres autistas.
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