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Por que tantas mulheres recuam da denúncia? A lei, o medo e o ciclo da violência

Estou no Instagram: brunasalesal

Li uma matéria na Eufêmea, escrita pela jornalista Raíssa França, sobre as amarras invisíveis que levam tantas mulheres a voltarem para o agressor (leia aqui). Como advogada, pesquisadora e mulher que atua diariamente na defesa de direitos, convivendo com o ciclo da violência a partir de diversos ângulos, não consegui deixar de fazer uma análise a partir do meu olhar jurídico e responsável. Não apenas para trazer reflexão, mas também para servir como instrumento desinvisibilizante, capaz de revelar o que tantas vezes é silenciado.

Muitas mulheres que denunciam violência doméstica, em algum momento, se veem pressionadas a voltar atrás. Quando isso acontece, quase sempre já se trata de um ciclo que se sustenta há muito tempo. Não é o primeiro tapa, a primeira agressão ou o primeiro desconforto que faz a mulher buscar ajuda. A denúncia geralmente surge quando a medida se torna fundamental para assegurar a integridade física, emocional, psicológica, patrimonial ou sexual.

Em muitos casos, o agressor se coloca como vítima de um mal-entendido, alega acidente ou exagero. Para quem observa de fora, isso pode parecer incoerente. Para quem vive, é uma encruzilhada entre medo, afeto, dependência e sobrevivência — realidade que a pesquisadora Valeska Zanello explica a partir dos chamados dispositivos de gênero.

O que a lei estabelece

No Brasil, a continuidade de uma ação penal não depende apenas da vontade da vítima, mas da natureza da ação penal. Isso significa que o que determina se ela pode ou não voltar atrás é o tipo de ação penal envolvida:

• Ação penal pública incondicionada → O autor da ação é o Ministério Público, que atua para garantir a aplicação da lei, penalizando quem a descumpre. Nestes casos, a vítima não pode voltar atrás.
Ex.: lesão corporal leve no âmbito da violência doméstica (art. 129, § 9º, CP), conforme decisão do STF na ADI 4424. A denúncia não pode ser retirada, ainda que a vítima queira.

• Ação penal pública condicionada à representação → A vítima precisa manifestar vontade para que a ação seja proposta. Nestes casos, ela pode voltar atrás, mas somente dentro do prazo legal.
Ex.: ameaça (art. 147, CP). A vítima pode se retratar, mas exclusivamente em audiência e antes do oferecimento da denúncia (art. 16, Lei Maria da Penha; art. 25, CPP).

• Ação penal privada → A vítima pode desistir até antes da sentença (renúncia, perdão ou perempção).
Ex.: injúria e difamação (geralmente ações penais privadas). A vítima pode desistir até a sentença.

Essa vedação à retratação é fundamentada na própria Lei Maria da Penha e em decisões do STF, que compreenderam que o Estado deve impedir que o ciclo de violência seja naturalizado pelo sistema de justiça. A legislação — mesmo com suas limitações — busca blindar a vítima de pressões externas, tratando a violência doméstica como uma questão pública, e não como escolha privada.

Um exemplo prático é que, para que a mulher desista da representação, é necessário que ela faça isso em audiência especialmente designada, perante o juiz, e com a oitiva do Ministério Público. Além disso, a retratação só pode ocorrer até o oferecimento da denúncia; depois disso, não é mais possível (art. 25, CPP).

O ciclo da violência

A explicação para esse movimento de recuo pode ser compreendida pelo ciclo da violência doméstica, descrito por Lenore Walker. Esse ciclo envolve três fases:

  1. aumento da tensão (ameaças, humilhações),
  2. explosão (agressão física ou psicológica),
  3. lua de mel (promessas de mudança, reconciliação, pedidos de perdão).

É nessa terceira etapa que muitas mulheres desistem da denúncia, acreditando na promessa de transformação, mesmo diante da repetição do padrão. Não é incomum que, diante da repercussão social e jurídica, agressores façam promessas de casamento, viagens ou presentes para convencer a mulher a desistir.

Diferentes experiências, diferentes vulnerabilidades

É fundamental lembrar que não podemos julgar todas as mulheres da mesma forma. Ser mulher não é uma experiência única: raça, classe, orientação sexual e outras condições atravessam as escolhas possíveis e as estratégias de sobrevivência.

Algumas desconfiam dos instrumentos de proteção; outras dependem deles para viver. Há também quem não consiga reconhecer a situação abusiva, insistindo em acreditar em uma cultura que posiciona mulheres em lugares de subordinação. Muitas vezes, o ambiente violento ainda parece menos degradante do que enfrentar a vida sem rede de apoio, sem condições financeiras ou sem proteção estatal. Quando há filhos, o medo se amplia: teme-se não só pela própria vida, mas pela de toda a família.

O dispositivo amoroso

A psicóloga Valeska Zanello acrescenta uma leitura potente ao tratar dos dispositivos de gênero. O chamado dispositivo amoroso ensina que o valor da mulher está no vínculo afetivo: ser escolhida, ser esposa, manter a relação. Sob esse peso, muitas silenciam a própria dor em troca da promessa de amor ou estabilidade.

Quando uma mulher recua de uma denúncia, isso não é apenas um ato individual. É o efeito de uma cultura que cobra que ela preserve a relação, mesmo que isso custe sua integridade. Por isso é tão comum ouvir frases que culpabilizam a vítima e questionam suas falas.

Por que o Estado não pode se omitir

É exatamente por esse motivo que a lei afasta a ideia de que a violência doméstica possa ser tratada apenas entre as partes. O Estado deve assumir o dever de agir, reconhecendo que o silêncio da vítima muitas vezes não é liberdade de escolha, mas resultado de pressões sociais, emocionais e econômicas.

Voltar atrás em uma denúncia de violência doméstica raramente é apenas desistência. É, muitas vezes, sobrevivência em um contexto que ainda responsabiliza a mulher por manter a relação e por “não destruir a família”. Reconhecer isso é essencial para não culpabilizar mulheres e para exigir que o sistema de justiça permaneça firme no enfrentamento à violência de gênero.

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