Enquanto o mundo assiste protestos antirracistas iniciados nos Estados Unidos, após a morte do ex-segurança George Floyd, por um policial, no Brasil um casal mostra que o amor não tem cor. Casados desde 2014, Isabelle Meireles, 33 anos, e Thiago, 34, adotaram quatro filhos negros. Três dos quais – Wallace, 15 anos, André, 12 e Ketlen 9, são irmãos biológicos e viviam em um abrigo da cidade de Betim (MG), onde mora a família. Naiara chegou logo depois, tem 18 anos e estava prestes a sair do acolhimento quando o casal a encontrou. Foi amor à primeira vista.
Os irmãos biológicos têm outros três irmãos, que também foram adotados por outro casal de mesma cidade. As duas famílias costumam se reunir sempre que possível e dessa forma os laços afetivos são mantidos. Na pandemia, os encontros são virtuais.
Isabelli e Thiago não têm problema algum de fertilidade, mas sempre nutriram o desejo pela adoção. E mais, a adoção tardia, aquela que geralmente se dá após três anos de idade.
Quando achavam que a família estava completa, eles conheceram Naiara. Há seis meses, a jovem está sob guarda do casal para fins de adoção. Viraram ativistas da causa e da luta contra o preconceito que os próprios filhos sofrem.
“Antes mesmo de nos conhecermos o desejo de ter filhos por adoção já estava nos nossos corações”, contou ao Isabelli ao Eufemea. Ela diz que o início do processo de habilitação dos três irmãos começou em 3 de abril de 2017. “Conhecemos Wallace, André e Ketlen no dia 20 de maio de 2017. A conclusão do processo de adoção dos três saiu em 8 de maio de 2019”.
Isabelli conta que o que mudou em relação à visão de adoção. “Em 2015, numa igreja que a gente congregava, eles realizaram um evento do Dia das Crianças, num abrigo na cidade de São Joaquim de Britas, vizinha a nossa. E nessa ida ao abrigo a gente se deparou com uma realidade diferente. Essa ida mudou a nossa visão em relação à adoção. A gente viu a realidade dos abrigos. São crianças maiores, grupos de irmãos, adolescentes, e é fora daquele perfil que a maioria deseja adotar. Com isso, eu e Thiago decidimos que a gente queria ter um filho até 10 anos, podendo ter um irmão”, lembra Isabelli.
Segundo ela, foi tudo feito por intermédio do Fórum. “A gente iniciou a entrega da documentação em abril de 2017 e em maio foi nos apresentada a história dos nossos filhos. Com pouco mais de um mês de processo a gente já conheceu eles. Mas só em maio de 2019 que saiu a adoção, porque quando a gente conheceu eles não tinham passado pelo processo de destituição do poder familiar. A família biológica tinha ainda os registros em nome deles, mas estavam com o poder legal suspenso”, relata.
O casal estava certo que voltaria a adotar outro filho, mas não tão rápido como aconteceu. Isabelli faz parte do grupo de Apoio de Ação Betim e organizou um evento do dia das crianças em 2019. Um dia esteve na casa de acolhimento de meninas adolescentes, todas à espera de adoção, “foi quando conheci a história da Naiara. Foi uma história muito forte, me sensibilizou demais, porque a gente viu que como adolescente, em 71 dias ela seria desacolhida. Ela passou por mim olhando para baixo, deu um “boa tarde” tímido e entrou para a casa. Quanta coisa mudou desde esse encontro”. Naiara hoje é a quarta filha de Isabelli e Thiago.
“Morro de orgulho da nossa família e da história linda que escrevemos juntos. Não canso de admirar meus filhos. Coisa de mãe, né? Como sou feliz com a família linda que Deus me permitiu ter. Amo cada um dos meus filhos da uma maneira que nem sabia que seria capaz de amar”, diz Isabelli, ao desabafar: “Não é apenas a emoção de estar inserida no universo da adoção. É o dever social de fazer mais do que tenho feito. Somos tão omissos diante das necessidades das nossas crianças e adolescentes. Esquecemos das crianças que estão esperando que a Justiça determine o seu futuro. Cada dia no acolhimento gera marcas profundas”, afirma.
Desemprego e trabalho de uber
Sem apoio para criar os filhos, a não ser vindo da família e de uma pessoa anônima que contribui com os estudos, Isabelli diz que perdeu o emprego por causa da pandemia, já o marido de dia coordena um projeto social que trabalha com dependentes químicos e à noite roda de uber para conseguir pagar o carro que compraram e ajudar nas despesas da casa. Ela diz que conta com ajuda emocional do Grupo de Apoio à Adoção de Betim (GAABE) e tem usado o Instagram pessoal para falar sobre adoção, buscando conscientizar, desmistificar e ampliar o debate sobre questão inter-racial. “Uma criança ou um adolescente ao ser adotado legalmente é filho. Não é uma ação de caridade ou algo temporário”, destaca.
Em casa, ela conta que todos ajudam. “As crianças nos ajudam muito. A gente tem um cronograma de atividade de divisão de tarefas, o que cada um é responsável por semana. Moramos em um apartamento, que não é muito grande. Nesse período de pandemia eu montei também um cronograma de estudos para eles, os quatro estão estudando”, diz.
“Você é preta; seus pais não vão gostar de você”
Se em casa Wallace, que tinha 12 anos quando foi adotado e hoje tem 15, André, que chegou no lar com 9 anos, e tem agora 12, Ketlen, que tinha 7 e está com 10 e Naiara que tem 18 anos recebem todo o amor, cuidados e carinho, além de educação, lá fora não é bem assim. A mãe conta dos casos de racismo que os filhos sofreram e sofrem. Situação que os fizeram, inclusive, mudar de casa.
“Duas situações me magoaram muito. A gente morava em um outro condomínio, antes da Naiara chegar e um dia algumas crianças jogaram ovos no prédio do lado, e aí eles acusaram os nossos filhos. Só que, graças a Deus, no dia que aconteceu esse incidente toda nossa família não estava em casa. Nós estávamos numa festa no projeto social do meu marido. Ficou muito claro que foi preconceito, racismo e isso mexeu muito com a gente. Foi uma das coisas que fez a gente querer correr de lá, porque os meninos sentiram o preconceito, comentaram claramente que se sentiram discriminados. Inclusive, um vizinho mandou uma mensagem que eu nem acreditei que vi aquilo: “Ah esse povo que tem um monte de filho, tinha que amarrar no tronco e dá chicotada”.
Outro episódio marcante, diz Isabelli, foi no condomínio onde moram atualmente. “Um garoto branco, na faixa etária mais ou menos igual à da minha filha Ketlen, de 9 anos, disse pra ela essas duras palavras: ‘Quando crescer seus pais não vão gostar de você porque você é preta’. Eu estava preparando o jantar e minha filha entrou chorando no apartamento. Senti uma faca rasgando o meu peito. Naquele momento o nosso abraço consolava nós duas. Já tinha falado de racismo e preparado meus filhos, mas quando passamos por isso é mais doído”, diz Isabelli.
Para eles, ela diz que passa todos os dias a seguinte mensagem: “O que eu mais quero é que eles cresçam fortes, que consigam lutar diante das situações difíceis, que consigam enxergam quando sofrerem racismo, de saberem se defender e de conquistarem as suas coisas, de lutar e entenderem que eles podem ocupar qualquer espaço na sociedade e que vai ter gente que vai querer impedir, gente que vai diminuí-los, mas que não é isso que vai os impedir”.