A advogada Amanda Souto Baliza, 29 anos, é a primeira mulher trans a ter seu registro profissional na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Goiás (OAB-GO) retificado. O passo inicial foi a modificação do registro civil e agora ela pode exercer a advocacia com a nova carteira da OAB, conquista que lhe custou muita luta, mas que Amanda comemora e diz que é uma vitória para a população trans.
Integrante da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero (CDSG), Amanda conversou com o Eufemea, a quem contou sobre sua trajetória e o que muda em sua vida a partir de agora.
“Eu terminei o curso de Direito em 2012 aos 21 anos. Na época em que eu estava pensando em prestar vestibular eu pensava em Psicologia, mas acabei indo pro Direito. Atualmente eu também pego algumas matérias de psicologia como aluna especial na UFG”, ela conta.
A realização do sonho não parou por aí e Amanda ainda tinha uma batalha pela frente. Mudar o registro profissional.
“Ter o documento retificado é muito gratificante, um ato que reforça a dignidade. É muito constrangedor ter que apresentar um documento com nome e foto que não apresenta a realidade vivida. Acho que agora não vou me sentir mal quando algum amigo chamar pra sair em algum lugar que exige documento para entrar”.
Ela fala sobre preconceito. “O direito é uma área muito conservadora, eu atuo em Direito da Saúde e Direito LGBTQI+, eventualmente no Direito Criminal quando se trata de prisão em flagrante e no Direito do Trabalho com uma parceria que tenho com um escritório”, revela, ao dizer que o preconceito “é sempre velado. Ninguém nunca me disse nada dentro do Fórum ou até dentro da OAB mesmo, mas certos olhares dizem mais que muitas palavras”.
Amanda lembra que uma das situações que marcaram sua vida ocorreu antes de mudar a documentação.
“Eu tinha medo de fazer audiências e sofrer algum constrangimento. Então, geralmente ia de terno com um vestido por baixo e quando chegava no carro tirava o terno, talvez seja um pouco de paranoia ter esse medo todo, mas às vezes vemos certas situações na mídia que reforçam essas cautelas”.
Quanto ao processo de mudança do registro, ela fala que a maior barreira foi a burocracia. “Muita gente acaba sendo barrada nela. O cartório que escolhi para fazer o procedimento meio que se especializou nisso, então todos me trataram com muito respeito. Na OAB também me trataram de forma muito respeitosa”.
“Meu registro novo foi emitido dia 18 de março, minha OAB nova foi emitida esses dias, ainda não peguei o documento físico, só o digital, estou esperando a carteira do plano de saúde ficar pronta para aproveitar a viagem. Todo cuidado é pouco nessa pandemia.”
A advogada conta ainda que o momento em que conseguiu o novo registro foi de emoção e de surpresa. “Pra mim foi uma surpresa ser a primeira aqui em Goiás a fazer esse procedimento, já ouvi dizer que existem outras pessoas trans, mas não as conheço. Elas devem usar o documento social”, relata, ao falar que sua história sirva de inspiração, mas acima de tudo de transformação.
“Espero que a história seja inspiradora sim, mas também espero que no futuro seja algo tão comum que não precise virar notícia. Em questão de sonhos por enquanto só quero ser um pouco mais feliz, me conhecer mais e levar uma vida sem medo de sofrer ataques simplesmente por ser quem sou”.
Cheia de planos e sonhos, Amanda conta sobre um convite que recebeu. “Existe um instituto aqui em Goiânia chamado Instituto Padma, ele é dedicado a ajudar a mulheres a empreender e ajuda na educação financeira. Elas me convidaram para um projeto que visa ajudar na inclusão de pessoas LGBTQI+ no mercado de trabalho, ainda está no papel, mas acredito que será um bom projeto”, revela.
“Não queria ser o desgosto da família”
Ao Eufemea, Amanda falou ainda sobre quando se descobriu trans e o que mudou em sua vida a partir desse momento.
“A questão de gênero sempre esteve presente em minha vida, desde criança, mas só fui entender que era trans por volta de uns 12-14 anos, foi muito difícil porque tinha medo, né? Não queria ser o desgosto da família, não queria ser uma decepção pros meus pais, esses foram os pensamentos que ficaram na minha cabeça por muito tempo”.
Sobre o processo de transição, ela relata: “Eu iniciei a transição de certa forma tarde, então na faculdade não enfrentei preconceitos, mas tivemos outras dificuldades. Meu pai é balconista em uma farmácia e minha mãe costureira, nossa família não tinha muito dinheiro, fiz o curso pelo Fies”.
“Tenho um irmão biológico que é a pessoa que mais amo no mundo e dois irmãos de criação que são filhos da minha madrasta. Hoje eu moro só, minha mãe mora em Aparecida de Goiânia, que fica na região metropolitana da capital, e meu pai em Anápolis, que fica cerca de 55km daqui. Até onde eu sei sou a única pessoa LGBTQI+ na família. Se tem alguma outra pessoa ainda não saiu do armário”, ela diz, sorrindo.
Antes de contar à família, ela relata o drama que viveu. “Quando a questão de gênero se tornou insuportável, eu busquei uma psicóloga e fui trabalhando isso e outras coisas, primeiro contei para meus amigos próximos que me apoiaram incondicionalmente. Na família, a primeira pessoa que tive coragem de contar foi meu irmão, que me apoiou desde o primeiro dia, foi e é alguém que cuida demais de mim”, diz Amanda, ao contar como a mãe dela reagiu.
“Depois contei para minha mãe, a reação dela foi bem ruim, não aceitou, me disse umas coisas bem tristes, mas com o tempo ela parou de confrontar. Hoje em dia ainda nunca me chamou de Amanda, mas entendo que ela está no tempo dela”.
Já o pai, Amanda conta que foi o último a quem falou. “Meu pai foi o último que contei, eu disse que queria conversar com ele e ele resolveu vir aqui em casa. Eu não esperava uma reação ruim, mas ele superou minhas expectativas. Ele me disse ‘E o que é que tem? O mundo é assim mesmo, Deus te fez assim. Não vou sentir menos orgulho de você por causa disso”.
Depois disso, relata a advogada, “ele reuniu a família toda e contou e no geral a família aceita, um ou outro às vezes fala algo inconveniente, mas faz parte né?”.
“Geralmente comigo o preconceito é velado, às vezes é mais explícito. Antes de mudar os documentos uma atendente se recusou a colocar Amanda na minha comanda em um bar aqui da cidade, ela queria colocar o nome do documento, tive que falar com o gerente”, lembra, ao ,relatar sobre o preconceito nas ruas e na web.
“Já aconteceu de gritarem obscenidades na rua, uma vez fui em uma distribuidora comprar refrigerante e dois homens estavam conversando, daí um disse pro outro: “Aqui em Goiás não é como lá no Sul, quando a gente vê viado matamos mesmo” e coisas do tipo, agressões mais verbais acontecem na Internet. Por algum motivo as pessoas perdem um pouco de sua humanidade quando estão atrás de uma tela”, diz ao falar de um momento que marcou sua vida.
“Acho que momento marcante posso citar o Carnaval desse ano, mas não foi um caso de preconceito, foi um caso de assédio. O cara passou a mão na minha perna e levantou meu vestido, segurei a mão dele e disse: “Não”. Ele riu e respondeu: “Desculpa, você estava muito chamativa”. Eu nunca tinha passado por assédio que chegasse ao físico, geralmente ficava no verbal. Fiquei sem reação na hora, sem saber o que fazer”.
No mundo, o Brasil ocupa a posição de país que mais mata pessoas transexuais, chegando a mais de 124 registros de mortes em 2019.