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Na arte da escrita, jornalista encontra refúgio para superar doença degenerativa: “Desistir, jamais!”

Aos 60 anos de idade, a jornalista Olívia de Cássia Correia de Cerqueira está prestes a lançar o segundo livro, Palavras sem Nexo, poesias de autoria própria. Portadora de Ataxia spinocerebelar  ou doença de Machado-Joseph, uma síndrome rara e no caso dela, hereditária, Olívia mantém na escrita e na leitura a força para seguir em frente e superar o desafio que é lidar com uma doença que causa desordem neurológica pouco conhecida, de origem genética e hereditária.   

É nas palavras que ela se expressa e segue a vida compartilhada com seus animais de estimação (gatos e cachorros) e as plantas, cultivadas em um jardim que cuida em frente à casa onde mora, um espaço bucólico, no centro de Maceió, cortado pela linha férrea e cujo silêncio só costuma ser quebrado pelo apito do trem.  

Quem entra na casa logo percebe a paixão de Olívia pela leitura. Tudo lembra as letras, desde os livros, a até a antiga máquina de datilografia que ela preserva intacta. Também ama fotografa e das mãos dela já saíram fotos de encher os olhos. Olívia é, sem dúvida, uma apreciadora das artes. O Eufemea conversou com a jornalista e escritora que conta sua história e fala sobre o lançamento do segundo livro, impresso com recursos próprios, como informa. 

“Palavras sem Nexo é o  segundo livro, mas é de poesia, ou pensamentos que fui rascunhando ao longo do tempo, desde a adolescência.  Como eu digo na apresentação do livro, Palavras sem nexo é um apanhado de rabiscos que fui ‘desenhando’ ao longo dos meus anos, desde a adolescência até bem recentemente. Alguns textos foram datilografados e publicados logo que entrei na faculdade, artesanalmente, (Daquilo que vivo e sinto ou Vivências), no COS da UFAL, junto com Mário Lima, jornalista, que estava lançando seu livro de poesias”, conta Olívia. 

“Confesso que fui ousada e muito sem noção em achar que aquilo que coloquei no papel seria poesia, mas arrisquei e estou arriscando agora, para preencher meus dias de aposentada por invalidez, ou incapacidade permanente, como se diz agora, que me exige ações cerebrais, para que eu não atrofie de vez”.  

Ao leitor, ela diz: “Não pense que vai  encontrar uma obra de arte, ou que esteja alimentando paixões não correspondidas, tal qual na mocidade, quando as ilusões eram presença permanente  em minha vida. As minhas ilusões amorosas já foram perdidas, contornadas e substituídas. O que está ali é apenas uma ferramenta de expressão. Foi editado e revisado pela poeta viçosense, Merandolina Pereira de Melo, que também é psicóloga”. 

O primeiro livro lançado por Olívia foi Mosaicos do Tempo. “Fala da minha história, desde a infância, umas pinceladas sobre a Ataxia, a doença que vem acometendo minha família ao longo dos anos, séculos, eu diria, meus conflitos de gerações com minha mãe, um pouco da minha árvore genealógica, até minha separação. A  campanha foi idealizada pelo jornalista Odilon Rios e sua esposa, Ana Cláudia Laurindo, que é  escritora e teve grande envolvimento da sociedade alagoana,  a quem sou eternamente grata a todos que contribuíram”. 

Ambos os livros, ressalta a jornalista, “foram editados na CBA, Gráfica e Editora, que por coincidência é de propriedade de Carlos Fabiano Costa Barros, sobrinho-neto de Maria Mariah, jornalista e professora palmarina, primeira  mulher a vestir calças compridas em União (risos)”. 

O lançamento Palavras sem Nexo ainda está em stand by, mas Olívia diz que está divulgando nas suas redes sociais e talvez faça o lançamento virtual, já que está complicado o presencial com essa pandemia”. 

Um caderno e uma caneta 

“Eu sempre gostei de escrever, naquele tempo tínhamos os cadernos, onde colocávamos  tudo o que se passava conosco. Tive influência da amiga Eliane Aquino que fazia contos com as amigas e seus paqueras, pedia os cadernos dela emprestado e fazia os meus. Uma vez mostrei para uma amiga vizinha e ela me disse que era tudo besteira aquilo que eu escrevia. Talvez ela tivesse razão,  Mas como eu sempre fui rebelde e fazia tudo ao contrário, continuei saindo com um caderno e uma caneta e quando estava com os amigos, eu escrevia aquilo que chamo de poesia”. 

O amor pelos livros é uma paixão antiga: “Gostaria de influenciar mais pessoas a escreverem, principalmente os jovens; que os vejo muito alheios”, diz Olívia

Olívia segue fazendo uma verdadeira viagem no tempo sobre sua paixão pela escrita. “Os amores platônicos foram muitos na infância e adolescência e eu era muito chorona, porque me sentia rejeitada pelos meus paqueras, aí minha válvula de escape era desabafar com as amigas e colocar aquilo tudo no papel, só assim eu me aliviava”. 

Para ela, o fato de ser jornalista “ajuda, sim, nesse processo de escrita literária, pois além de gostar de escrever, embora depois da aposentadoria tenha ficado um pouco ausente da escrita, sou leitora voraz,  amo meus livros, fico olhando minha estante e me dá satisfação  quando os vejo e fico pensando no mundo de conhecimentos que eles podem me dar, e isso me facilita um pouco. Escrever significa colocar pra fora o que às vezes não consigo dizer em palavras, é uma catarse”. 

“Às vezes você pensa que o que escreve não tem muita importância, mas de vez em quando vem alguém e te diz: “me identifiquei com o que você escreveu” e é bom a gente saber que não está só, na sua maneira e pensar. Gostaria de influenciar mais pessoas a escreverem, principalmente os jovens; que os vejo muito alheios”.   

“A doença da família” 

Entre livros, plantas, passeios que ela sempre gostou de fazer, veio a notícia que desde muito cedo acreditava que aconteceria com ela: a doença que acomete a família havia batido a sua porta também.  

“Sou portadora da Ataxia spinocerebelar  ou doença de Machado-Joseph, uma síndrome rara e no meu  caso, hereditária. Muitos anos se passaram desde que eu comecei a discorrer e ler sobre Ataxia e o que é conviver com ela, e sobre os impedimentos e limitações que os portadores passam no dia-a-dia”.  

Olívia conta que depois de escrever o primeiro livro,  Mosaicos do Tempo e procurar informações sobre a doença, “comecei um contato com portadores do problema e recebi o convite de Priscila Fonseca, então presidente da Associação Brasileira dos Portadores das Ataxias Hereditárias e Adquiridas, organizadora de um livro em outro estado, só sobre o problema, para escrever um depoimento sobre o que é conviver com essa doença rara”.   

À época do depoimento, ela revela, “eu ainda não tinha o diagnóstico e também não aparentava tanto ter a doença, mas já sentia alguns efeitos. Muita gente na minha idade, inclusive vários parentes meus, já não conseguem se locomover sem a ajuda de um andador ou de uma cadeira de rodas, devido aos tombos e quedas que são frequentes”.  

A ataxia, relata a jornalista, “é ainda um mistério e começou a ser estudada na década de 1970.  Na minha família, antigamente, todos só conheciam o problema como “a doença da família” ou a “maldição da família Siqueira/Cerqueira, Paes, Correia, Vieira” e há bem pouco tempo é que descobrimos o nome científico. Segundo os cientistas teve início na Ilha dos Açores, em Portugal, onde os casamentos consanguíneos foram acontecendo de forma desordenada”.  

E assim foi também com os familiares dela. “Da mesma forma aconteceu na minha família. Meus pais eram primos-irmãos, assim como seus ascendentes e os relacionamentos foram se perpetuando e a doença se alastrando como se fosse uma maldição mesmo. Dizem que o portador de Ataxia é um revoltado, rebelde, depressivo, mas tem muito portador usando de bom humor para aliviar as nossas dores e os nossos incômodos”.  

Quem convive diariamente com um portador de ataxia, no estágio mais avançado, diz Olívia, “sabe do que eu estou falando. Foi assim com minha mãe e meu irmão Paulinho, que cuidaram do meu pai, em União dos Palmares, até o último suspiro. Há muito preconceito ainda na sociedade para com as pessoas que têm esse problema, tanto que muita gente esconde a doença e diz que é apenas uma labirintite”.  

“Hoje encaro meu problema com suavidade, procurando ter dias de ocaso mais descomplicados e serenos. Só precisei do teste genético, para fins de aposentadoria, no INSS, mas eu já sabia, muito antes disso, que eu tinha sido contemplada com a “herança maldita da família”.   Convivi com meu pai, acompanhei tudo de perto e tinha consciência dos meus sintomas e limitações”.  

A jornalista conta ainda como estão seus dias convivendo com a doença, mas diz que desistir está fora de seu pensamento. “Eu quase não escrevo como antigamente, fazendo anotações prévias num caderno. Minha caligrafia está cada dia mais feia, pela falta de coordenação que a Ataxia traz. Se eu penso em desistir? Jamais, estarei sempre na luta, até quando o Senhor me chamar”. 

“Esse momento de pandemia, está sendo de reflexões, muita leitura, estou fazendo reforma em casa, procurando não pensar nesse pesadelo mundial.  O que digo sempre quando me perguntam é que não desistam do seu sonho, por  mais que ele pareça utópico”.