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Quilombola defende formação de base, autocuidado e empoderamento da mulher, na Bahia

O que leva uma mulher negra, quilombola, índia, de religião de matriz africana, LGBT, com poucos recursos financeiros, a concorrer a um cargo eletivo numa disputa marcada pelas grandes campanhas políticas? O Eufemea inicia hoje uma série de reportagens com candidatas a vereadoras das chamadas minorias sociais do Nordeste para mostrar o que levou à decisão de brigar por um espaço no Poder Legislativo municipal e as propostas que apresentam.  

Juliana da Silva Vaz, 30 anos, é do Quilombo Araçá Cariacá, do município de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, onde concorre pela primeira vez ao cargo de vereadora pelo Partido dos Trabalhadores (PT). É coordenadora nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas do Brasil, como voluntária, e consultora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Já no ‘currículo da vida’, ela se define como “a Juliana do quilombo, filha de agricultura, criada no quilombo, com princípios coletivos, que nasceu pra luta”. 

Ela estreia a série de matérias e contou o que a levou a disputar uma vaga na Câmara de Bom Jesus da Lapa, na Bahia e o que propõe se eleita for. 

Para as mulheres do quilombo, Juliana afirma que sabe de cada necessidade, pois é onde convive, e anuncia como ações de mandato a “formação de base e política, autocuidado e bem-estar, diálogo sobre empoderamento, a fim de que elas revejam o quanto são especiais e rompam com a submissão”.  Também defende o “acesso à educação, justiça, segurança, lazer, à saúde e valorização às práticas religiosas”. 

“Na verdade, eu já faço isso mesmo sem estar na gestão pública, com o que aprendi na graduação em Serviço Social, venho escrevendo projetos de editais todos com aprovações das ONGs que liberam recurso para a realização dessas ações”, pontua Juliana, que a exemplo das demais quilombolas e mulheres de religião de matriz africana, conta com o apoio da Rede de Mulheres de Comunidades Tradicionais. 

Já aos demais grupos de mulheres em torno do município baiano, Juliana afirma que a partir de constante diálogo com elas e suas representantes, construirão juntas as pautas que elas precisam e que serão a base dos projetos que apresentará no Legislativo.

“Com elas na plenária, com a aprovação delas, levarei para o gestor e executaremos os desejos e sonhos coletivos dessas mulheres”. 

HISTÓRIA DE VIDA 

Juliana conta que deixou o que a juventude lhe proporciona para fazer luta coletiva. “Mobilização das bases, diálogos constantes com os órgãos públicos, defesa do Decreto 4887 que garante a permanência dos quilombolas em seus territórios, em confronto com a bancada ruralista encabeçada pelo DEM no Congresso Nacional”, afirma a quilombola. 

“Eu tenho uma missão com meu povo e agora nesse processo de luta pela participação no Legislativo, quero junto com o Poder Executivo devolver os investimentos que o meu povo faz nos cofres públicos através das cargas tributárias sob a forma de políticas públicas”. 

A candidata diz ainda que veio para servir e informa que desde muito cedo participa das reuniões da associação junto com a família.

“Fui criada naquele meio, tomando decisões, montando estratégias de sobrevivência coletiva contra os fazendeiros que diziam ser donos dos nossos territórios, cercavam as lagoas, muravam os rios pra impedirem o nosso acesso às águas e meu povo sempre em mutirão, de forma coletiva resolvia”, diz. 

E afirma: “Essa é minha referência de vida, sou cria de homens e mulheres que mesmo sem nunca ter lido um artigo, muitos nem alfabetizados são, mas fizeram mandatos incríveis na associação, sem nunca negociar os nossos sonhos em detrimento pessoal”.  

“Dessa forma, tenho como princípio norteador dos meus caminhos a construção da unidade, associativismo, coletividade, a consulta, orientações dos mais velhos. O olhar coletivo me define, a luta coletiva, a ânsia por justiça, a angústia em resolver algo para o outro”, destaca Juliana. 

LUTA E ORGANIZAÇÃO 

Segundo ela, para disputar um mandato foi  indicada pela organização quilombola de Bom Jesus da Lapa, junto com outros  nomes. Mas precisou passar por uma avaliação. Porém, ela diz que resistiu ‘por conta de questões subjetivas’. “E depois porque é um processo muito complexo a disputa eleitoral. Sou uma pessoa que uma fala me deixa triste, um olhar me deixa triste e na minha visão eu não iria suportar”, ela conta.  

A quilombola ressalta que diante dos pedidos e orientações a seguir o sentimento que tomou conta dela foi de gratidão. “Tudo que tenho, tanto em bens materiais como de princípios de valores, foi graças à luta e organização política do meu povo, ocupação dos órgãos públicos, audiências, pautas de reivindicação, mobilização e assim conquistamos, junto com os governos, as políticas públicas de sobrevivência de vida, me dando o poder de ter uma casa, energia elétrica, água, escola, educação, saúde e noção de coletividade e tantos ensinamentos”. 

“Esse SIM tem a ver sobretudo com os caminhos que os colonizadores traçaram ao meu povo e que refletem até hoje. Eu vou reparar os estragos que a escravidão deixou no povo preto desse município”.   

DIREITOS HUMANOS 

Mas ela destaca que se sair vitoriosa nas urnas, fará um mandato para todos, com foco nos direitos humanos. “Não é pelo fato de ser de um quilombo que irei centralizar minha atuação no Legislativo nas necessidades do meu povo não. É claro que terei um olhar específico àqueles que me colocaram diretamente lá e de onde eu vim. Meu foco será nos direitos humanos. Serei funcionária de cada ser humano do município de Bom Jesus da lapa”. 

“Junto com o Poder Executivo, irei organizar os investimentos que o povo faz aos cofres públicos através dos impostos e com a força de trabalho e devolver à população sob a forma de políticas públicas. Uma devolução consciente, humana e justa, onde cada cidadão entenda que o acesso é seu, com a visão de que cada funcionário público é seu funcionário”.