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Pesquisa revela que formação de juízes influencia culpabilização de mulheres em crimes de estupro

Quando a vítima de estupro chega ao Judiciário ela já passou por uma verdadeira via-crúcis, pois muitas vezes os processos levam anos, o que para ela é uma caminhada de muita revitimização, dor, sofrimento, vergonha e culpa, como atesta a professora Livya Ramos Sales Mendes de Barros, especialista em Direito e Processo Penal. O caso da blogueira Mariana Ferrer, em Santa Catarina, traz à tona o drama de mulheres vítimas de estupro no Brasil e reacende o debate sobre o pesadelo vivido até chegar na esfera judicial e daí à sentença. 

Autora da dissertação de Mestrado em Sociologia pela Ufal (Universidade Federal de Alagoas) intitulada “Não tem coisa melhor do que você distribuir justiça! – Poder e dominação masculina nas razões de decidir dos magistrados alagoanos nos crimes de estupro contra mulheres”, Livya conversou com o Eufemea, a quem contou que a pesquisa foi resultado de uma caminhada de paixão pelo tema e muita vontade de revelar o que estava por trás dos processos.  

“Também a ideia de que em se tratando de outros crimes, o estupro é o único em que a vítima precisava mostrar que não é a culpada e o eixo das investigações é pautado não no descobrimento da verdade dos fatos, e sim de quem está  “mentindo”, afirma Livya.

Ela diz ainda que “às mulheres historicamente é dado o olhar da dúvida, vingança… essa lógica de deslocar o olhar para o comportamento feminino e trazer elementos ausentes em lei foram os ingredientes principais que me motivaram à pesquisa”. 

Livya Sales pesquisou  se havia relação entre as histórias de vida dos magistrados e os motivos pelos quais decidem em casos de crime de estupro

Livya conta que durante o mestrado se interessou também por abordar além do Poder Judiciário, como a instituição social responsável pelo julgamento envolvendo vítimas mulheres,  investigar se havia relação entre as histórias de vida dos magistrados e os motivos pelos quais decidem em casos de crime de estupro.  

“A partir de entrevistas com os juízes, observei como suas vivências profissionais e especialmente pessoais estão incutidas nas sentenças e na sua forma de ver o Direito. Analisei sentenças de estupro proferidas em todo o Estado de Alagoas, a fim de apreender recorrências, mudanças e permanências nos vereditos”, ela conta. 

A pesquisadora relata o que se seguiu a partir daí. “Identificamos como se constroem as condenações a partir de parâmetros nem sempre presentes na lei. Aí, com esses discursos em forma de sentença, busquei mostrar que não são isentas as trajetórias da formação dos magistrados e suas biografias, como elementos que respaldam as decisões por eles proferidas. Isso dá visibilidade à reflexão acerca de como a formação sociojurídica dos magistrados ratifica o modo conservador que, por vezes, responsabiliza as vítimas pela agressão sofrida”. 

LUGAR DE PODER 

Em um dos trechos do trabalho, que teve a orientação da professora-doutora Anabelle Santos Lages, Livya mostra que a magistratura em Alagoas é composta de 81,1% homens. Questionada o que isso significa na prática, ela aponta para o que chama de lugar de poder.  

“O sistema de categorização das mulheres tem conduzido historicamente determinadas decisões judiciais nos casos de estupro, que é fortemente ancorada na visão patriarcal estruturante das relações de gênero contemporâneas. Essa visão não é só masculina, mas a magistratura é um lugar de poder que as mulheres são absolutamente minoria, então não é particularidade dos homens reproduzirem uma visão androcêntrica. Infelizmente, como isso faz parte de uma estrutura, as mulheres também reproduzem essa visão”. 

No entanto, ressalta Livya Sales, “equilibrar as relações de gênero na sociedade faz parte de uma mudança de perspectiva que eu vejo como urgente e necessária nos cargos de poder. Essa questão é muito extensa e toca na visão desigual do trabalho doméstico, na atribuição de papéis dados a mulheres e homens desde o nascimento e que determinam (como se fossem biológicos) a vida, as ações, práticas e competências”. 

“As mulheres têm obrigações e responsabilidades, culpas muitas vezes, justificam ações violentas contra elas. Isso é um absurdo!  Como que o sistema de justiça não ia incorporar essa ideia? Como não pensar em uma vítima “genuína”? Como não pensar em alguém que tivesse impulsionado (com seu comportamento e/ou condição de ser) uma ação (em alguns discursos “reação”) contra essa pessoa que não agiu de acordo com o que a sociedade esperava?”, questiona a especialista, que integra o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Condição Feminina (ICS/UFAL) no Grupo de Pesquisa Gênero e Emancipação Humana (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq), é uma das coordenadoras da LADHC (Liga Acadêmica de Direitos Humanos e Criminologia) no Centro Universitário Maurício de Nassau – Uninassau e coordenadora do grupo de estudos e pesquisas Gênero e Vitimologia na Faculdade de Tecnologia de Alagoas (FAT). 

CULPABILIZAÇÃO 

Culpar a mulher vítima do estupro é prática corriqueira observada na sociedade, como atesta Livya Sales, que explica por que isso acontece e em que momento a mulher deixa de ser vítima e torna-se réu.  

“No sistema de justiça criminal, ao  se valerem de “equipamentos técnicos” – como a jurisprudência, as leis e as doutrinas –, os juízes não suprimem sua autonomia diante dos fatos aos quais precisam julgar, atribuir pena, culpabilizar ou inocentar. Negar essa autonomia seria quase tão inocente quanto negar sua condição relativa, tendo em vista que esse espaço de interpretação não só é fruto de histórias de vida como de incorporação de práticas. O que observamos dentro dessa margem de interpretação a que o juiz pode se valer? A princípio, um (também relativo) livre deslocamento de atenção, ao deixar de analisar o fato em si – e, por fato, entendemos a ocorrência do estupro – para engendrar uma “inspeção à moral sexual” da vítima”.