Casos de violência sexual contra a mulher, principalmente o estupro, são a todo momento tratados como uma relação sexual, e daí relativizados. Mas distante do ato consentido, o estupro é crime. “Uma brutal violação do corpo e um exercício de poder sobre o outro”, como atesta a professora Livya Sales, especialista em Direito e Processo Penal.
A especialista é categórica ao afirmar que a linha que divide é a do consentimento (válido – que a vítima possa garantir que quer). “Qualquer coisa depois do não, é estupro e ponto. Sem essa ideia odiosa de ‘faz parte do jogo do amor’. Jogo tem que ser junto, todo mundo querendo e podendo jogar! Infelizmente ainda há essa fantasia absurda de que estupro é uma oportunidade de sexo… isso é lamentável”.
Livya Sales, que possui um vasto currículo, e atua em pesquisas sobre condição de gênero, chama atenção ainda para a relativização de situações que violam a dignidade da mulher.
“Estamos em tempos em que alguém dizer abertamente que se uma pessoa feia for estuprada o estuprador merece um abraço é no mínimo criminoso. Não acho isso engraçado, porque antes de tudo isso é um drama, uma violação imensa que devasta a vida de uma pessoa. É muito triste quando a gente vê retrocessos como o caso de Mariana Ferrer no processo de revitimização da vítima. Ainda bem que é estamos atentos e fortes, como diz a canção…se lá nos anos 80 que as limitações de organização eram grandes, conseguimos derrubar a tese da legítima defesa da honra. Não é agora que a gente vai deixar isso voltar impunemente…”, ela pondera.
Um estupro a cada 11 minutos
Autora da tese de mestrado “Não tem coisa melhor do que você distribuir justiça” – Poder e dominação masculina nas razões de decidir dos magistrados alagoanos nos crimes de estupro contra mulheres”, Livya lembra que “a cada 11 minutos uma pessoa é estuprada no Brasil. 81,8% das vítimas são mulheres. A maioria das vítimas (53,8%) foram meninas de até 13 anos – 4 a cada hora. Foram 66 mil vítimas de estupro no Brasil em 2018, maior índice desde que o estudo começou a ser feito em 2007, isso sem contar que o crime de estupro é uma dos mais subnotificados”.
Segundo ela, “estima-se que esse número pode chegar ao triplo, sobretudo em uma conjuntura de pandemia em que as relações domésticas vêm sendo marcadas por violência de todos os tipos e dificuldades de denúncia. Esse crime é um crime de gênero, isso pra mim é claro”.
Em relação a Alagoas, Livya diz que o Estado historicamente é muito violenta com as mulheres. “De acordo com o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Alagoas registrou um aumento de 38,7% no número de estupro/estupro de vulnerável e tentativa de estupro/estupro de vulnerável. Os dados são equivalentes aos números de 2019, em contrapartida aos de 2018”, ela lembra.
O estado de Alagoas, de acordo com a especialista, “é o terceiro do país em números de estupro e estupro de vulnerável, ficando atrás apenas do Amapá (72,4%) e do Rio Grande do Norte (58,7%)”.
Situação que se agrava porque, como ela informa, “Alagoas não forneceu ao FBSP os dados que especificam as vítimas mulheres de estupro e o número das tentativas de estupro, nem de assédio ou importunação sexual. (https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-final.pdf) Outro dado alarmante é a crueldade dos crimes e com vítimas menores, inclusive com justiçamento envolvido”.
Negras com até 13 anos
Quem são as potenciais vítimas? E os potenciais agressores? Livya Sales informa que o crime de estupro é bastante heterogêneo a não ser pela vítima que em regra é mulher (81,8%). “Mas os dados revelam que 50,9% são negras e 48,5% são brancas e 53% tem até 13 anos. Não existe a figura de um criminoso “em potencial” que reúne características que certifiquem que essa pessoa tem perfil de estuprador. O estuprador pode ser qualquer pessoa, até porque esse crime não acontece por um distúrbio, a raiz é outra”, ela afirma.
Segundo ainda a especialista, “o número de pessoas com doenças mentais é baixíssimo e geralmente o agressor é conhecido da vítima, o que tira a ideia do clássico mito de que o estuprador está na rua escura esperando uma mulher desavisada com roupas provocantes. Para a ONU, inclusive, o lugar mais inseguro para as mulheres é a casa, e isso inclui a violência sexual”.
Isso porque, como explica Livya, “grande parte dos estupradores preenche o estereótipo acima de qualquer suspeita. Em relação à vítima, isso ainda é mais brutal: são violentadas de mulheres idosas a crianças e isso também desconstrói a imagem da vítima provocadora que “praticamente” convidou o agressor a estuprá-la, estimulando-o. Essa tese foi muito usada nos anos 90 e tem voltado com força. Na verdade, ela nunca saiu da cultura jurídica. Num passeio pelos manuais, jurisprudências, sentenças, argumentos de advogados, é fácil encontrar isso”.
Violação do corpo
No seu estudo, que resultou na sua dissertação de mestrado, apresentada no departamento de Sociologia pela Ufal (Universidade Federal de Alagoas), a pesquisadora mostra também o comportamento quando se trata de jovens.
“Tem uma capítulo lá na minha dissertação que eu intitulei com uma música que eu adoro do Cazuza: “…eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades…” Temos avançado, mas há um retrocesso abissal… Espero que nos recuperemos de tanta violência…”, ela diz, ao chamar atenção para os números.
Livya lembra ainda que temos um movimento forte de luta e não aceitação. Porém, ela diz que “em contrapartida há uma realidade extremamente inóspita para quem resolve denunciar…a justiça não é acolhedora e causa dor, sofrimento e descrédito em quem foi em busca de amparo”.