Reportagem: Géssika Costa/Olhos Jornalismo
Em maio de 2020, a menstruação demorou a chegar. Com a espera, veio a suspeita da gravidez. Duas semanas com o ciclo menstrual atrasado, Carla Souza*, 29, comprou dois testes rápidos e fez um exame de sangue. Não deu outra: confirmado. Estar grávida nunca fez parte dos planos dela, uma mulher negra, natural de Arapiraca, Agreste de Alagoas, que trabalha como caixa de um supermercado e mora com a avó e um tio. O desejo de interromper a gestação colocou em risco a sua liberdade, já que a legislação brasileira classifica esse direito previsto em mais de 70 países pelo mundo como crime.
De acordo com dados da Polícia Civil de Alagoas (PC-AL), obtidos via Lei de Acesso à Informação pela reportagem do Olhos Jornalismo, mulheres negras, com média de idade de 30 anos e moradoras de cidades do interior, como Carla Souza, são as que tiveram seus nomes arrolados a inquéritos policiais pelo crime de aborto, no período dos anos de 2011 a julho de 2021. Ao menos 18, com idades de 15 a 51 anos, dos municípios de Penedo, São José da Tapera, Porto Calvo, Delmiro Gouveia, Junqueiro, União dos Palmares, Palmeira dos Índios, Viçosa, Pilar, Roteiro, Matriz do Camaragibe, Santana do Ipanema, São José da Tapera e Rio Largo e Maceió respondem ou responderam à investigação na polícia judiciária.
Os dados também revelam que sete homens, no mesmo período, foram alvo de investigação pelas seguintes qualificações: aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, aborto provocado por terceiro — sem consentimento e aborto provocado por terceiro sem o consentimento, forma qualificada — lesão corporal grave.
No Brasil, o aborto é permitido apenas em três casos: gravidez de risco à vida da gestante, gravidez resultante de violência sexual e anencefalia fetal, conforme o Supremo Tribunal Federal decidiu em 2012.
O Código Penal brasileiro prevê quatro tipos de artigos e punições para quem pratica ou contribui para interrupção da gestação. O primeiro, o 124, prevê pena de um a três anos para quem “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”. Já no artigo 125: “provocar aborto, sem o consentimento da gestante tem pena de reclusão, de três a dez anos. Os artigos 126 e 127 fazem referência a “provocar o aborto sem consentimento da gestante e ao aumento de pena caso aconteça alguma lesão corporal grave ou morte”. No primeiro caso, a pena é de um a quatro anos e, no segundo, “as penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte”.
A advogada e conselheira da Associação Nacional da Advocacia Criminal em Alagoas (Anacrim-AL), Emmanuele Marques, destaca que como a maioria dos crimes tipificados por aborto são classificados com poucos anos de prisão, as penas podem ser respondidas em liberdade. Caso a dosimetria ultrapasse os oito anos, esse tempo deve ser cumprido em regime fechado.
“Em relação a isso, condenado não reincidente — aquele que nunca cometeu o crime antes, cuja a pena for igual ou inferior a quatro anos de prisão, poderá sim, desde o início, cumprir a pena em regime aberto”, explica a advogada.
Para Marques, a discussão sobre a legalização do aborto no país não avança em virtude da legislação ainda ser cercada de valores religiosos e morais. “Deveria ser tratado como uma questão de saúde pública. Inclusive, ele é reconhecido hoje em países como Uruguai e Argentina. Infelizmente, a nossa legislação se encontra hoje envolta do conservadorismo e do machismo”, pondera.
O medo da prisão acompanha as mulheres
Carla sabia que não se encaixava em nenhuma das possibilidades previstas na legislação para abortar legalmente, mesmo assim decidiu não prosseguir com a gestação — conseguiu por meio de indicações de amigas comprar no mercado ilegal o misoprostol, medicamento conhecido como Cytotec.
[Nota da Redação: a compra de medicamentos sem procedência representa uma ameaça à saúde. As organizações internacionais Women Help Women e a Safe2choose enviam pílulas abortivas a diversos países do mundo onde o aborto ainda é proibido. Clique nos links a seguir e conheça o trabalho de cada uma dessas iniciativas -> Safe2Choose – WHW]
Consultada pela reportagem, a Rede de Ginecologistas e Obstetras Feministas explicou, com base no manual Abortamento seguro: Orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde, da Organização Mundial de Saúde (OMS), que essa é uma das formas de interromper a gestação. Porém, o aborto realizado por pessoas não técnicas e em condições de higiene inadequadas pode colocar em risco à vida de mulheres e pessoas com útero.
Segundo a organização, existem os métodos farmacológicos e cirúrgicos, e a escolha do procedimento mais adequado depende do estágio da gravidez e de outros fatores de saúde. Os métodos farmacológicos utilizam uma combinação de dois medicamentos: a mifepristona e o misoprostol, ou apenas o misoprostol. Entre os métodos cirúrgicos, há a aspiração manual intrauterina a vácuo (AMIU). Existe também a dilatação e curetagem, um método obsoleto que, por ser menos seguro e consideravelmente mais dolorido para a mulher, a OMS recomenda substituir pela aspiração intrauterina.
Após ter em mãos o medicamento, a arapiraquense — com a ajuda do namorado e da avó — utilizou o remédio. Passou alguns dias sentindo dores, cólica intensa e sangramento vaginal. Apesar de todos os efeitos colaterais, um de seus principais medos era o de precisar de atendimento médico no hospital e, assim, ter o risco de ser investigada criminalmente.
Na verdade, fiquei com uma pressão psicológica muito grande. Não apenas no processo do aborto. Só me vinha à cabeça as pessoas me julgando e até mesmo o medo de ser presa. Foi horrível. É algo muito pesado, não deveria ser assim. Eu não queria seguir com aquilo. Não deveria ter discussão alguma sobre o que eu quero no meu corpo e na minha vida
Julyane Souza**, 25, é mulher branca, maceioense, com formação em nível superior e suporte financeiro da família , mas também passou por uma situação parecida no final do ano passado. Mesmo sem apoio de seus parentes, conseguiu interromper a gestação numa clínica na cidade de São Paulo.
Embora proibido, alguns estabelecimentos de saúde funcionam de maneira legal para outros tipos de consultas e internamentos em vários estados do Brasil, fazendo o procedimento de aspiração intrauterina na clandestinidade. O local geralmente tem toda estrutura, é bem equipado e possui uma equipe hospitalar preparada, mas, claro, não é acessível para mulheres pobres. Só com o procedimento médico, Souza gastou R$ 6 mil, pagos em dinheiro vivo, em um envelope discreto para não deixar rastros.
“O lugar é todo organizado, tranquilo e muito profissional. Saí de lá, segundo meu namorado, em cinco minutos. Esse foi o tempo necessário para a aspiração. Não que eu não queira ter filho, eu não queria ter este. Sei que nesse sentido sou privilegiada, milhares de mulheres não têm e não tiveram essa chance”, relata.
Veja aqui o depoimento completo de Julyane Souza
Recortes por território e raça
A reflexão de Julyane tem fundamento. Ela não está no perfil das mulheres que são criminalizadas por praticar aborto no Estado. Em Alagoas, 85% dos inquéritos policiais foram registrados no interior do Estado. Em âmbito nacional, a agenda de direitos reprodutivos vem sofrendo sucessivos ataques — principalmente de grupos conservadores e religiosos, o que pode ser agravado ainda mais em regiões precárias e com menos acesso à educação, lembra Gyovanna Nonato, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Ciências criminais (IBCCRIM) e integrante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas.
A pesquisadora expõe que são inúmeros os fatores que interferem no direito da mulher que está precisando do atendimento médico após um aborto clandestino. São nesses lugares, muitas vezes, em que elas são denunciadas.
“Quem convive no meio é ciente que existem estratégias que os profissionais de saúde utilizam para dificultar a realização do aborto, segurando a gestação até chegar em um momento que o procedimento não é mais viável para a gestante. É imprescindível considerar o micropoder existente dos profissionais de saúde como um espaço muito autônomo, pois ainda que haja uma lei, muitos irão decidir com base na sua moralidade e questões religiosas”, argumenta.
Esse ciclo — que atinge mulheres já vulnerabilizadas — chega com muito mais frequência às gestantes negras. Mais de 66% das investigadas pelo crime no estado têm esse perfil. Isso é reflexo, segundo Nonato, da seletividade e racismo estrutural existentes no Brasil. Segundo ela, diversos estudos demonstram que mulheres negras são as mais criminalizadas pelos profissionais de saúde, as mais denunciadas e acusadas de realizar aborto provocado, mesmo quando afirmam que o aborto foi espontâneo, o que contribui para o aumento de denúncias e consequente investigação contra esse grupo.
A pesquisadora também explica que pode haver uma correlação da falta de acesso à informação, ou seja, exclusão social, e criminalização da mulher negra.
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“O nível de informação sobre educação sexual é extremamente deficiente nas áreas de periferização, onde se encontra grande parte da população negra. É leviano a afirmação que ‘hoje em dia só engravida quem quer e não se cuida’, seguindo o pensamento de que métodos contraceptivos seriam de fácil acesso a todas. No que tange ao racismo institucional, é perceptível que as mulheres negras enfrentam uma dificuldade ainda maior no processo de busca por atendimento e menos acesso a opções de métodos contraceptivos”, ressalta.
Em um país marcado por profundos abismos sociais e econômicos, o sentimento que tudo poderia ter dado errado ainda persegue Carla, que espera que num futuro próximo outras brasileiras não precisem se submeter a métodos inseguros, em razão de uma legislação que coloca em risco a vida de mulheres que apenas gostariam de decidir o que é melhor para as suas vidas.
“Ninguém, absolutamente ninguém escolhe passar por isso. Tive apoio, mas isso não diminuiu a minha aflição, sabe? Antes, eu falava sobre o assunto, mas não entendia bem e não fazia questão de debater, hoje sinto que é uma prioridade discuti-lo ainda mais porque sei exatamente o que é ficar aflita por uma situação de risco com medo de morrer ou ser presa”, diz.
**Para preservar as personagens e protegê-las de uma possível criminalização, seus nomes foram mantidos sob pseudônimos.
***A imagem em destaque é da ilustradora Marta Pucci.
“Esta reportagem é uma produção do Programa Sala de Redação, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, do projeto Jornalismo & Território, com o apoio da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Porticus e Open Society Foundation”.