Por Isabelle Guedes, João Victor Brito, Thiago Oliveira e Vitória Ester
Colagem ilustrativa – Créditos: Thiago Oliveira
Bochechas menores, nariz mais fino, lábios maiores, abdômen trincado – são essas as características que observamos de forma repetida, ao passar alguns minutos na aba ‘explorar’ do Instagram. Em meio a tantos padrões, o ato de auto comparação se torna frequente, deixando levar pelo questionamento sobre a própria aparência, o que compromete a saúde mental de quem está exposto a este tipo de conteúdo. A questão, que não é antiga, mas se acentua na era das redes sociais, levanta a seguinte questão: até onde vai a saúde mental nessa corrida da beleza?
“A jornada para amar meu corpo nunca vai acabar”, disse Megan Fox, atriz e referência de corpo “padrão” das últimas duas décadas: magra, seios fartos, cintura fina, lábios carnudos. Fazendo parte do que é considerado – ao menos no ocidente – um ideal de beleza, a atriz estadunidense declarou que não está satisfeita com sua aparência. Recentemente, ao sair na capa da revista Sports Illustrated Swimsuit, ela revelou ter dismorfia corporal e disse ainda nunca ter amado seu corpo.
Atriz Megan Fox – Foto: reprodução
Apesar de comentários positivos em relação a aparência, durante toda sua carreira artística, Megan luta uma guerra interna em sua mente, já que ela não consegue se ver da maneira que os outros a enxergam. A atriz já realizou diversos procedimentos ao longo da carreira, na tentativa incessante de não sair do padrão imposto por Hollywood. É nessa direção que damos enfoque a um tópico da mente, enfrentado por 2% da população mundial: Transtorno Dismórfico Corporal.
GIf ilustrativo – Gif: Vitória Ester
Reflexo no espelho
O Transtorno Dismórfico Corporal (TDC), popularmente chamado de dismorfia corporal, é uma condição psicológica que faz o indivíduo ter uma insatisfação profunda com sua aparência. Muitas vezes detalhes imperceptíveis para o outro acabam sendo uma avalanche para a mente.
Pressões culturais e sociais relacionadas à aparência, padrões de beleza idealizados, experiências de bullying, vivências traumáticas no passado, baixa autoestima, perfeccionismo estético e influências familiares são alguns fatores que podem influenciar no desenvolvimento de transtornos dentro do espectro obsessivo compulsivo.
Com o avanço das redes sociais, as pessoas têm se preocupado mais com a aparência, o que não quer dizer que as redes sejam a causa, mas são grandes impulsionadores para comparativos. Os filtros que deixam a pele lisa, o nariz menor ou mudam a tonalidade da pele têm se tornado para algumas pessoas um verdadeiro vício difícil de superar, aumentando ainda mais a expectativa com a própria imagem. Muitas pessoas acabam se sentindo feias em fotos tiradas por terceiros, por não ter aquele toque “especial” da edição, e levam a queixa para o consultório.
A esteticista Alice Maria nos contou que, os procedimentos estéticos voltados para a redução de medidas são os mais procurados pelos pacientes atendidos por ela em sua clínica. E ainda afirmou que muitos deles, levam fotos de pessoas famosas cheias de edições e cirurgias para serem tomadas como referência na realização de intervenções estéticas.
“Quando o paciente relata esse desejo de ficar parecido com alguém, é o melhor momento para alinhar a expectativa com o paciente e evitar frustrações posteriores enquanto a realidade. As mídias sociais com certeza são responsáveis por uma parcela da popularização de procedimentos estéticos”, comenta a esteticista.
Imagem ilustrativa – Foto: Vitória Ester
Sintomas de distúrbio de imagem
A pessoa que sofre com o transtorno de imagem está sempre em frente ao espelho analisando o seu reflexo. Essa prática tende a provocar uma baixa autoestima, pois, na maioria das vezes, há uma insatisfação com a sua aparência. A cada instante busca motivos para examinar e encontrar alguma imperfeição na própria imagem.
De acordo com uma pesquisa feita em 2019 pelo grupo Cellera Farma, o público de pessoas que apresentam o maior índice de TDC são os jovens entre 15 a 20 anos, podendo ser homem ou mulher. É nessa fase da juventude que os sintomas se manifestam, visto que é o período onde o cérebro ainda está em formação.
Os sintomas que uma pessoa com TDC apresenta podem ser facilmente confundidos com excesso de vaidade, como por exemplo, a compulsão por produtos de beleza. Porém, é de extrema importância se atentar aos sinais apresentados já que eles são acompanhados de depressão, ansiedade, baixa autoestima, compulsão por exercício físico, comparação do próprio corpo com o de outras pessoas e até mesmo a procura recorrente por cirurgias plásticas.
A médica psiquiatra Dra. Clarissa França relata a dificuldade de quem sofre de TDC em buscar ajuda. “É muito raro aparecer um paciente com transtorno dismórfico corporal no consultório buscando ajuda. Porque na prática essas pessoas acabam indo para o consultório do cirurgião plástico. Quando são encaminhadas para um psiquiatra, muitas vezes elas apresentam uma resistência ao tratamento”, ressaltou a psiquiatra.
Em recente entrevista para a influencer Blogueirinha, no programa “De frente com Blogueirinha”, a influenciadora digital Gessica Kayane conhecida na internet pelo nome de Gkay relatou sobre a reversão dos procedimentos estéticos e a distorção de imagem que enfrentou.
Antes e depois da remoção do preenchimento labial da influencer Géssica Kayane, conhecida como Gkay – Foto: reprodução/Instagram
“Eu tirei três litros de ácido hialurônico que tinha no meu rosto, porque assim, eu tinha um pouco de distorção de imagem. Eu achei que ia ficar com a autoestima baixa, mas pelo contrário me sinto muito melhor hoje. Inclusive, não teria feito muitos procedimentos que eu fiz, porque às vezes a gente perde a mão mesmo nessa coisa de sempre procurar o melhor e se comparar com os outros. Eu achava que ia ficar bonita como as Kardashians”, contou a influencer.
A partir da busca implacável pela perfeição, surgem os exageros oriundos de uma dismorfia, podendo ser corporal ou facial. Colocar 20 litros de prótese mamária, retirar costelas até chegar a cintura mais fina do mundo e até fazer cirurgias em sequência com o objetivo de se tornar o ‘’Ken humano’’, são alguns dos casos que nos levam a questionar os limites de tais modificações na aparência.
Segundo o médico cirurgião plástico Fernando Gomes, especialista na área há 20 anos, a busca pelas cirurgias plásticas na atualidade tem a ver com a necessidade de se expor.
Para o profissional, a cirurgia plástica no Brasil passou a ser encarada como um produto, assim como os procedimentos invasivos não cirúrgicos, e isso gera uma padronização. “Todo mundo quer ter o rosto retangular, as maçãs do rosto proeminentes. É o fenômeno ‘fofão'”, pontua o médico, fazendo alusão ao personagem da década de 80.
Convidamos o médico psiquiatra Dr. Lucas Tavares para conversar mais sobre o tema. Confira a entrevista completa:
O Dr. Lucas atua como psiquiatra em Maceió/AL, é formado pela Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (Uncisal) e fez residência médica em psiquiatria pelo Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre. Ele também é Especialista em Terapia Cognitivo Comportamental e fala sobre saúde mental em suas redes sociais. Nesta entrevista ele irá abordar sobre o papel fundamental que o psiquiatra tem no diagnóstico e no tratamento dos transtornos mentais. Ao passo que orienta como que isso ocorre, e desmistifica alguns preconceitos que as pessoas têm em torno do assunto.
Médico psiquiatra Dr. Lucas Tavares durante entrevista – Gif: Thiago Oliveira
NÓS: Dr. Lucas, qual o papel do psiquiatra nesse sentido?
DR. LUCAS: O papel do psiquiatra no tratamento de transtornos de imagem envolve a avaliação e diagnóstico adequados, prescrição de medicações, quando necessário, além de fornecer suporte emocional e orientação do tratamento multidisciplinar. O psiquiatra trabalha em conjunto com outros profissionais de saúde, para fornecer um cuidado integrado.
NÓS: Transtornos como ansiedade e depressão estão relacionados aos transtornos de imagem?
DR. LUCAS: Sim, mas não são exclusivos, há também outros transtornos. A ansiedade e a depressão podem ser gatilhos para a preocupação com a imagem corporal e agravar os sintomas dos transtornos de imagem existentes, assim como a insatisfação com a aparência corporal e os transtornos de imagem podem levar ao desenvolvimento de ansiedade e depressão.
NÓS: As redes sociais podem desempenhar um papel negativo no desenvolvimento e agravamento dos sintomas nos transtornos de imagem? De qual modo?
DR. LUCAS: Apesar das redes sociais terem ajudado a aumentar a conscientização sobre saúde mental, elas também influenciam a desinformação, os estereótipos negativos e preconceito em relação aos transtornos mentais, incluindo os transtornos de imagem. Devido ao aumento da exposição a imagens idealizadas de corpos e rostos “perfeitos”, o instagram pode sim desempenhar um papel negativo. Filtros e aplicativos de edição de imagem disponíveis nas plataformas de mídia social ajudam a criar expectativas irreais de aparência e aumentar a pressão social para que as pessoas se adequem a esses padrões. Isso pode contribuir negativamente para os sentimentos de inadequação, insatisfação corporal.
NÓS: Os transtornos de imagem têm relação com os transtornos alimentares?
DR. LUCAS: Os transtornos de imagem e transtornos alimentares levam a uma preocupação excessiva e distorcida com a aparência física. O transtorno dismórfico corporal é caracterizado por uma preocupação persistente e excessiva com um defeito imaginado ou leve na aparência, mas percebido fortemente pelo paciente, levando a um sofrimento significativo e impacto nas áreas da vida diária. Os transtornos alimentares, como a anorexia nervosa, bulimia nervosa e transtorno de compulsão alimentar periódica, envolvem padrões alimentares anormais e preocupação intensa com peso e forma corporal.
NÓS: Como deve ser feito o tratamento do transtorno de imagem?
DR. LUCAS: O tratamento para esses transtornos exige uma abordagem multidisciplinar, incluindo intervenções psiquiátricas, psicológicas e, em alguns casos, terapia nutricional. Em relação a um transtorno de imagem mais leve deve ter uma avaliação e diagnóstico bem feitos. Envolverá a identificação dos sintomas, a análise do histórico médico e psicossocial do paciente, bem como a realização de entrevistas clínicas.
NÓS: De quais formas podemos alertar as pessoas sobre esse tema?
DR. LUCAS: Através da psicoeducação, ou seja, fornecer informações e educar o paciente sobre o transtorno de imagem é uma etapa importante. Envolvendo explicar os sintomas, os fatores de risco envolvidos, as possíveis causas e os efeitos na vida diária. Temos como objetivo aumentar a compreensão do paciente sobre seu transtorno e reduzir a culpa ou o estigma associado.
NÓS: O que você indica para a boa recuperação?
DR. LUCAS: Podemos lançar mão da terapia individual, pela abordagem de TCC (terapia cognitivo-comportamental), de grupo ou suporte, pois participar de grupos de apoio ou terapia em grupo com outras pessoas que também enfrentam problemas de imagem pode ser benéfico. Compartilhar experiências, aprender com os outros e receber apoio mútuo pode ajudar a reduzir o isolamento e fornecer uma sensação de pertencimento. A terapia também aborda comportamentos prejudiciais, promove a construção de uma autoimagem mais realista e saudável, além de desenvolver estratégias de enfrentamento para lidar com a insatisfação corporal.
NÓS: Em relação a um transtorno mais grave, associado a depressão, ansiedade e bulimia, por exemplo, como deve ser o tratamento?
DR. LUCAS: Intervenções mais intensivas e uma equipe de tratamento mais especializada devem estar presentes, como o acompanhamento médico regular para monitorar a saúde física e detectar possíveis complicações decorrentes do transtorno de imagem. Uma abordagem farmacológica, pois o uso de medicamentos psiquiátricos, como antidepressivos ou estabilizadores de humor, podem ajudar a tratar sintomas associados, como ansiedade, depressão ou compulsões. E terapia familiar, pois é de extrema importância envolver a família no processo de tratamento.
NÓS: Como manter-se mentalmente saudável?
DR. LUCAS: É importante adotar um estilo de vida positivo em relação a si mesmo. Praticar atividade física regularmente, alimentar-se adequadamente, ter tempo para descansar e praticar hobbies, gerenciar o estresse da vida diária, promover um autocuidado positivo, e buscar ajuda quando necessário. Isso pode incluir a busca de apoio emocional de amigos, familiares ou profissionais de saúde.
Imagem ilustrativa – Foto: Vitória Ester
E agora?
Entre as inúmeras preocupações e dúvidas que surgem após o diagnóstico de um transtorno psicológico está a pergunta: “e agora, o que fazer?”. Entretanto, a abordagem multidisciplinar é fundamental para que o paciente não venha a se sentir sozinho e perdido. Ao mesmo tempo em que desenvolve a clareza quanto a quais os passos que deverá tomar a seguir.
O psiquiatra Lucas Tavares ainda apontou que: “O tratamento multidisciplinar para transtornos de imagem deve ser individualizado e geralmente envolve a colaboração entre diferentes profissionais de saúde, como psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas e outros especialistas. Cada profissional desempenha um papel específico, contribuindo com o indivíduo, ajudando a superar os desafios relacionados à imagem corporal.”
Por esse motivo é importante que haja a colaboração entre psiquiatras, psicólogos, dermatologistas, cirurgiões plásticos ou quaisquer outros profissionais que serão necessários para formar a equipe multidisciplinar que o paciente necessite. Vale ressaltar que não só o acompanhamento profissional é importante como também o suporte familiar e de todos no entorno. O assunto precisa ser amplamente debatido e divulgado, principalmente agora na era que o manter-se conectado gera constantes comparações.