Começo este texto com um alerta: nenhuma experiência é única. Ainda que eu não possa falar da realidade do Nordeste como um todo, posso compartilhar o que venho observando sobre Salvador desde que retornei à cidade no início de 2024. Nada novo sob o sol, mas sempre necessário reforçar a desromantização de uma cidade cujo nome sugere salvação, mas que, na prática, não tem salvado nada nem ninguém.
A maioria de nós, negros e pertencentes à classe trabalhadora, só consegue resolver seus problemas – e os das nossas organizações – depois do Carnaval. E por quê? Porque esse é o momento em que todo trabalhador da base (ambulantes, cordeiros, seguranças), além daqueles do chamado “meio” da pirâmide econômica (profissionais da cultura, comunicação, produção, turismo, entre outros), consegue fazer um dinheiro extra. Um dinheiro que, muitas vezes, só será pago em 30, 60 ou 90 dias, enquanto os boletos continuam vencendo entre os dias 1º e 10 de cada mês.
Essa mesma realidade impacta diretamente as organizações de base, que promovem impacto real nas comunidades – sejam ONGs voltadas para juventude, ressocialização de pessoas e atendimento aos idosos, sejam organizações de mídia negra e periférica. Só neste mês, vi duas desistirem ou quase desistirem de suas atividades.
O caso mais recente é o do Focus Moda Social e Sustentável, que já formou 250 alunos em audiovisual (com apoio da Setre-BA) e atende 100 crianças, 200 adultos e 10 idosos com cursos e atividades. O projeto pode ter sido despejado no último dia 10 de março, por isso, esteve realizando um financiamento coletivo na plataforma Vakinha para ajudar nos custos do pagamento de dívidas, além de garantir a continuidade do projeto, cujas 350 pessoas que o integram, 60 são crianças.
Mas essa é apenas uma das muitas organizações que enfrentam dificuldades financeiras severas, desde problemas fiscais até a falta de recursos básicos, como alimentação para seus atendidos. O Portal Black Mídia, inclusive, não está fora dessa realidade, acredita?
A filantropia ignora o Nordeste, e o impacto disso é brutal
Mesmo que as organizações sejam ignoradas pela esfera municipal e estadual em Salvador, na Bahia e no Nordeste como um todo, o problema não se restringe à gestão pública. A Iniciativa Social Privada (ISP) e a filantropia institucionalizadas também escolhem a dedo quem apoiar. Enquanto algumas organizações recebem atenção e recursos de grandes fundos, outras – aquelas que, efetivamente, sustentam a vida e impedem que milhares de pessoas sejam tragadas pela criminalidade – são deixadas ao relento.
A situação se agrava com a reconfiguração do financiamento internacional. Com a transição de governo nos EUA, muitas organizações brasileiras, especialmente negras e nordestinas, já foram avisadas de que perderão parte significativa dos seus apoios. O ciclo se repete: os recursos internacionais chegam, mas logo se vão, deixando uma lacuna que nem o Estado nem o setor privado nacional se propõem a preencher.
Esse cenário escancara a desigualdade na destinação de recursos. Enquanto as grandes fundações concentram seus investimentos no Sudeste, os territórios do Norte e Nordeste – que representam 54% das organizações periféricas do país – seguem sub-financiados.
E isso tem rosto, gênero e cor. De acordo com os dados do levantamento Periferias e Filantropia (PIPA, 2022): 68% das pessoas que gerenciam organizações periféricas no Brasil são mulheres 74,1% dessas lideranças são negras (pretas e pardas) e Norte e Nordeste concentram a maioria dessas iniciativas, mas recebem menos investimentos.
Isso evidencia um descompasso brutal entre as prioridades da esfera pública e da ISP, historicamente focada no Sudeste, e as reais necessidades das minorias políticas e sociais do país. O problema da concentração de recursos não se limita às ONGs e organizações periféricas. Ele também afeta a mídia independente, que, muitas vezes, depende de editais financiados por big techs.
Segundo pesquisa publicada pela IJNet (Rede de Jornalistas Internacionais), o professor Mathias Felipe de Lima Santos, da Universidade Macquarie (Austrália), destaca que o financiamento das empresas jornalísticas pelas big techs gera dependência e amplia o conceito de filantrocapitalismo. Ou seja, as grandes corporações utilizam estratégias empresariais para promover simultaneamente ganhos econômicos e impactos sociais – enquanto aliviam as pressões regulatórias que enfrentam globalmente.
Além disso, os editais lançados por essas empresas costumam ter duração de no máximo 1 (um) ano, tornando inviável a construção de um modelo sustentável para as organizações jornalísticas. Isso impacta especialmente veículos independentes, a exemplo do Portal Black Mídia – com foco na juventude (Bahia) e Site Negrê – com foco nas questões raciais e territoriais do Nordeste, que seguem sem apoio duradouro e sem espaço para expandir sua atuação.
O que pode ser feito?
Descentralizar recursos é o primeiro passo. Grandes financiadores precisam reavaliar suas estratégias e direcionar investimentos para organizações da região amazônica e Nordeste, priorizando aquelas que possuem impacto direto nas periferias. É necessário estruturar modelos híbridos de financiamento, combinando investimento público, privado e estratégias de geração de receita própria.
Além disso, a proposta de criação de um fundo nacional para o jornalismo, como defendida por Mathias Felipe de Lima Santos, deve ser levada adiante – com um olhar especial para o Nordeste. Se esse fundo repetir os erros da filantropia privada e internacional, mantendo o financiamento centralizado no eixo Sul-Sudeste, estaremos apenas prolongando a desigualdade estrutural que já existe.
Enquanto o dinheiro continuar concentrado nas mesmas mãos e nos mesmos territórios, estaremos condenados a ver organizações fundamentais fecharem suas portas, enquanto grandes eventos continuam arrecadando bilhões sem retorno real para quem mais precisa.
A pergunta que fica é: quem está disposto a mudar esse cenário?
*Artigo escrito por I’sis Almeida e publicado originalmente no Portal Black Mídia no dia 10 de março de 2025
I’sis Almeida é sócio-fundadora, diretora executiva e de jornalismo do Portal Black Mídia. É jornalista e bacharel interdisciplinar em artes formada pela Universidade Federal da Bahia, além de técnica em comunicação visual e pós-graduanda em Direitos, Desigualdades e Governança Climática. É criadora e podcaster do Se Organiza, Bonita!
Contato: direcaoexecutiva@portalblackmidia.com.br
Foto de capa: Nappy.