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O erro de apontar para quem não feriu e a instrumentalização da mulher

A minha prática profissional começou a se transformar no dia em que percebi como a advocacia pode ser utilizada como peça dentro de estratégias que nada têm a ver com justiça. Há um ponto da carreira em que a gente entende que não defende apenas teses, mas também projeta sentidos, disputas, narrativas. E foi exatamente por compreender o risco da instrumentalização que escolhi não atuar em casos de violência ou demandas familiares quando o cliente é homem.

Há lutas que não podem ser usadas como palco para narrativas que negam a dor das mulheres. E sei que, em algum momento, minhas escolhas profissionais seriam devolvidas a mim como arma discursiva, o que comprova o ponto: a cobrança sempre recai sobre nós.

Essa decisão não nasce de um moralismo simplista; nasce da consciência política de que minha trajetória, minhas lutas e o que sustento publicamente podem ser convertidos em ferramenta de defesa para práticas que contrariam profundamente aquilo em que acredito. Essa é uma escolha pessoal, ética e militante. Sei que não é, nem precisa ser, consenso. Cada profissional caminha com seus limites, suas possibilidades e suas necessidades.

O direito de defesa é um pilar constitucional que não pode ser relativizado, e até a pessoa que comete a pior das condutas tem garantias que precisam ser exercidas, seja na esfera pública ou privada. Essa proteção jurídica não existe para absolver moralmente ninguém. Existe porque um sistema democrático sem defesa técnica não se sustenta. E alguém, necessariamente, terá o papel de oferecer essa defesa.

É justamente por compreender isso que me inquieta observar como, em situações de grande repercussão social, o debate se distorce com facilidade. O foco, que deveria permanecer firmemente na responsabilização do autor da violência, migra para outras figuras que nada têm a ver com o ato em si.

De repente, aquilo que deveria mobilizar indignação coletiva sobre a reincidência da violência contra mulheres se transforma em um julgamento moral de figuras femininas paralelas — a exemplo da própria vítima, que tem sua vida escancarada em um julgamento público; da advogada; ou de alguma familiar, que é culpada pelos atos violentos ou por qualquer outra coisa que isente o agressor do cenário de exposição a que ele, de fato, deveria sucumbir.

O curioso é perceber que esse deslocamento nunca ocorre de forma inocente. Quando a sociedade direciona sua crítica a quem não praticou o ato violento, ela alivia o peso simbólico sobre quem deveria ser o centro da responsabilização. O agressor sai de cena e quem entra no palco é alguma mulher, escolhida como objeto de indignação secundária. Repetimos, sem perceber, a velha engrenagem que absolve o masculino e responsabiliza o feminino, mesmo quando o feminino não teve participação na violência.

Por isso insisto: a discussão não pode se perder. A violência contra mulheres não é um detalhe narrativo, não é um pano de fundo. É o núcleo do problema. Qualquer desvio que transforme profissionais em protagonistas do debate presta um desserviço à luta por responsabilização e à construção de políticas efetivas de proteção.

Não é fácil ser e viver como mulher nesse mundo — seja nas relações afetivas ou profissionais — sempre há um, ou mais, dedos apontados para você.

Manter o foco é um gesto político. E o foco precisa sempre se voltar a quem produziu o dano e às estruturas que permitem que essa violência continue se repetindo. Tudo o mais, por mais barulhento que seja, é apenas ruído.

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