Por Anne Caroline Fidelis – Foto: Ascom MP/AL
Em pleno 2025, um tribunal do júri em Maceió julgou o feminicídio de Marcelle, assassinada a pedradas por seu ex-companheiro. A defesa, composta por um advogado e uma advogada, se dirigiu a um corpo de jurados exclusivamente masculino e adotou estratégias que remetem aos períodos mais sombrios da história do Direito: culpabilizar a vítima e minimizar a violência. A tática incluiu críticas abertas à Lei Maria da Penha e a alegação de que o réu teria “perdido a cabeça”. (Portal Eufêmea, 2025)
O episódio resgata fantasmas que pareciam superados, como a famigerada tese da “legítima defesa da honra”, usada em 1976 para absolver Doca Street, assassino confesso de Angela Diniz. À época, a defesa sustentou que o réu agira movido por “amor e desespero”. A estratégia reverberou o arquétipo patriarcal que perdoa o homem que mata em nome da honra ferida — conceito que, como nos ensina Heleieth Saffioti (2004), é expressão do sistema de dominação masculina que estrutura o machismo jurídico.
Em 2021, o Supremo Tribunal Federal, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779, declarou a inconstitucionalidade da legítima defesa da honra. Desde então, qualquer tentativa de reintroduzir essa retórica nos tribunais deve ser considerada ilegal e antiética. No entanto, como se observa neste e em tantos outros casos, a tese persiste disfarçada sob roupagens emocionalmente apelativas, como “crime passional”, “transtorno momentâneo” ou “amor excessivo”.
A atuação da defesa, nesses moldes, evidencia o que a jurista feminista Alda Facio (2006) classifica como um dos instrumentos de reprodução das desigualdades de gênero: o uso do Direito para reafirmar estereótipos patriarcais. Quando o advogado utiliza a tribuna para desqualificar a vítima, culpabilizá-la por sua morte, ou minimizar o sofrimento da mulher agredida, ele não apenas afronta a dignidade da vítima e de seus familiares, como colabora ativamente com a perpetuação da cultura de violência.
É por isso que o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, aprovado pelo CNJ em 2021, é ferramenta essencial. Ele estabelece parâmetros para a atuação de magistrados e operadores do Direito, incentivando uma escuta atenta e sensível às desigualdades históricas que atravessam as experiências das mulheres (CNJ, 2021). O protocolo recomenda que o sistema de justiça atue não de forma formalista, mas comprometida com a igualdade material — inclusive coibindo condutas que reproduzam estigmas, discriminações ou práticas misóginas.
As consequências dessas condutas, porém, não devem se limitar à crítica pública. Elas devem ser enfrentadas também no campo ético-profissional. O Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/1994) veda ao advogado o uso de meios indignos ou escusos no exercício da profissão e exige urbanidade, respeito e compromisso com os direitos humanos.
O uso da tribuna para ofender a memória da vítima, promover discursos machistas ou manipular estereótipos com fins de impunidade configura violação dos deveres éticos, passível de representação junto ao Tribunal de Ética e Disciplina da OAB. A ausência de responsabilização institucional diante desses comportamentos compromete a própria credibilidade da advocacia como profissão essencial à justiça.
Além disso, a atuação ofensiva de alguns advogados deve ser compreendida como forma de violência institucional, prevista na Lei nº 14.192/2021, que dispõe sobre a violência política de gênero. O uso da palavra em juízo não pode ser confundido com licença para a violência simbólica. Como bem aponta Carla Rodrigues (2015), o discurso jurídico, quando descolado de uma ética do cuidado, torna-se cúmplice das estruturas de opressão que afirma combater.
Assim, urge repensar o papel da advocacia na promoção de uma justiça verdadeiramente democrática. A palavra é poder, e o uso que se faz dela no espaço jurídico deve refletir compromisso ético, técnico e humano. A OAB, o Poder Judiciário e as instituições formadoras têm a responsabilidade de coibir esse tipo de atuação e capacitar profissionais para lidar com as questões de gênero de forma responsável.
Não se trata de limitar o direito de defesa, mas de exigir que ele seja exercido sem atacar os direitos das mulheres. A dignidade da vítima não pode ser colocada em xeque em nome de uma defesa oportunista, desleal e machista.
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Referências
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779. Relator: Min. Dias Toffoli. Julgado em 26 fev. 2021.
BRASIL. Lei nº 14.192, de 4 de agosto de 2021. Estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 159, n. 148, p. 2, 5 ago. 2021.
BRASIL. Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 10525, 5 jul. 1994.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br. Acesso em: 26 maio 2025.
FACIO, Alda. O que é uma análise de gênero do direito? Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 14, n. 2, p. 507-519, 2006.
PORTAL EUFÊMEA. Com júri 100% masculino, defesa critica a Lei Maria da Penha e alega que acusado “perdeu a cabeça” ao matar Marcelle. EuFêmea, Maceió, 21 maio 2025. Disponível em: https://www.eufemea.com/2025/05/com-juri-100-masculino-defesa-critica-a-lei-maria-da-penha-e-alega-que-acusado-perdeu-a-cabeca-ao-matar-marcelle. Acesso em: 26 maio 2025.
RODRIGUES, Carla. A ética do cuidado de si como crítica ao sujeito de direitos. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2015.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.