Quando pensamos em saúde mental, neurodiversidade e acolhimento, é impossível não lembrar de Ana Paes. Psicóloga e neuropsicóloga com mais de 23 anos de experiência, ela dedica sua trajetória a compreender e apoiar pessoas — especialmente mulheres autistas — com uma escuta atenta, baseada na ciência e no afeto.
Autora, palestrante e pesquisadora das adaptações da Terapia Cognitivo-Comportamental e da Terapia do Esquema para o autismo feminino, Ana é a minha convidada da coluna e trouxe um tema super importante: Autismo feminino e o roteiro invisível de sobreviver.
Falar sobre autismo feminino é abrir uma janela para histórias que quase sempre passaram discretas: meninas elogiadas pelo “bom comportamento”, adolescentes exaustas por cumprir roteiros sociais e mulheres adultas que aprenderam a funcionar apesar do barulho do mundo. Quando olhamos com cuidado, encontramos um padrão: uma mente que se adapta para caber, às vezes, à custa de si.
Este texto é um convite a reconhecer essas trajetórias, dar nome às diferenças e construir caminhos de cuidado mais justos.
Por que falar de autismo feminino agora?
O autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento com base biológica e início na infância, mas não se apresenta do mesmo jeito em todo mundo. Em meninas e mulheres, os sinais tendem a ser mais sutis, internalizados e socialmente camuflados. Isso empurra muitas para diagnósticos equivocados (ansiedade, depressão, TDAH, transtornos alimentares, transtorno de personalidade, transtorno afetivo bipolar) e intervenções fragmentadas.
Discutir o fenômeno no feminino é falar de acesso e de saúde: quanto mais tardio o reconhecimento, maior o custo psíquico e físico da adaptação constante.
O que é o autismo, em termos simples
O espectro envolve diferenças em dois grandes domínios. O primeiro diz respeito à interação e à comunicação social: ler pistas, sustentar trocas, entender subtextos e gerenciar a sobrecarga sensorial durante interações. O segundo contempla padrões de comportamento e interesses: necessidade de previsibilidade, rotinas, hiperfoco, movimentos repetitivos que, em mulheres, costumam ser discretos (como manipular objetos ou mexer no cabelo) e diferenças sensoriais marcantes (luz, som, cheiros, texturas).
Essas características estão presentes desde a infância e variam de intensidade. No perfil feminino, frequentemente há linguagem elaborada, excelente observação do ambiente e uso de “scripts” sociais, o que mascara dificuldades reais.
“Camuflagem não é mentira; é sobrevivência.”
É a estratégia que muitas mulheres aprendem para corresponder a expectativas sociais e não serem vistas como “estranhas”.
Por que o autismo feminino fica invisível?
Há, primeiro, um efeito de camuflagem social: um esforço consciente ou automático para imitar comportamentos esperados, ensaiar respostas, manter contato visual treinado e reduzir estereotipias em público. Funciona até deixar de funcionar.
Além disso, estereótipos de gênero ainda vigoram: espera-se que meninas sejam boas de relacionamento, organizadas e tranquilas. Quando cumprem essas expectativas, o sofrimento passa despercebido.
Os interesses intensos dessas meninas e mulheres frequentemente são socialmente aceitos, como literatura, estética e natureza, e por isso raramente são reconhecidos como “restritos”. Some-se a isso os quadros comórbidos (ansiedade, depressão, TEPT complexo, TDAH): a pessoa recebe tratamento parcial por anos sem que a raiz autística seja considerada.
Sinais e pistas que costumam aparecer
Muitas relatam fadiga social e necessidade de longos períodos de recuperação após interações. As diferenças sensoriais exigem estratégias constantes: fones, roupas específicas, alimentos “seguros” e rotinas para dormir.
O hiperfoco alterna períodos de alta produtividade com colapsos quando a sobrecarga chega. Há dificuldade com entrelinhas (ironia, indiretas, “jogo de cintura” no trabalho), apesar de bom vocabulário.
É frequente uma história de relacionamentos assimétricos, com autossacrifício e parceiros mais velhos ou controladores. Autocrítica elevada, perfeccionismo e medo de “errar em público” se combinam com um cansaço persistente.
Em fases de maior estresse, surge o chamado burnout autista: queda abrupta de funcionalidade após meses ou anos de camuflagem.
Camuflagem: da proteção ao preço pago
Camuflar é uma forma de proteção social aprendida cedo, observar, copiar, treinar. Com o tempo, o personagem fica afiado, mas a conta chega em forma de exaustão, dor sensorial e crise de identidade.
Descamuflar não é “parar de tentar”; é reposicionar esforços, ampliando ambientes e relações onde o próprio jeito de funcionar seja possível sem dor. É um processo progressivo de consentimento: dar nome às necessidades, testar ajustes e negociar limites.
Impactos na saúde mental
Sem um nome que organize a experiência, muitas atribuem o sofrimento à fraqueza pessoal. O ciclo é cruel: “Eu consigo, por que estou tão cansada?”.
A resposta costuma estar na soma de microesforços que passam invisíveis para os outros: entender subtextos, filtrar sons, suportar texturas, conter autostimulações e seguir scripts.
A sobrecarga contínua favorece ansiedade, depressão, transtornos alimentares, insônia e pode se associar ao TEPT complexo em quem viveu relações abusivas ou ambientes cronicamente invalidantes.
O diagnóstico correto reorganiza a narrativa: não é falta de força de vontade, são necessidades neurobiológicas não reconhecidas.
Caminhos de cuidado
O ponto de partida é uma avaliação especializada, que considere a história de desenvolvimento, o contexto atual e a escuta qualificada do cotidiano.
Entrevistas, escalas e, quando necessário, avaliação neuropsicológica ajudam a mapear forças e desafios com precisão. Na intervenção, a psicoeducação é chave: entender o próprio funcionamento reduz culpa e direciona escolhas.
Na clínica, a TCC adaptada ao autismo auxilia no manejo da ansiedade, na flexibilização cognitiva e no treino de habilidades sociais com roteiros práticos e leitura de contextos reais.
A Terapia do Esquema é útil para padrões de autocrítica, autossacrifício e vínculos assimétricos, fortalecendo limites e o chamado Adulto Saudável.
Paralelamente, o treino de regulação sensorial ajuda a identificar gatilhos e montar kits de suporte, como fones, óculos, texturas toleráveis e pausas programadas, ampliando a janela de tolerância.
No dia a dia, ajustes razoáveis em estudo e trabalho fazem diferença: comunicação direta, agendas claras, ambientes menos ruidosos, pausas curtas e frequentes, previsibilidade de mudanças e possibilidade de home office parcial.
Organizar a rotina energizada por interesses, usar o hiperfoco a favor com prazos e pausas, previne colapsos.
Por fim, uma rede de apoio que respeite ritmos, acredite nos relatos sensoriais e evite cobrar “performance social” mantém a saúde mental no centro.
Identidade e pertencimento
Receber um diagnóstico na vida adulta pode ser libertador. Memórias se reorganizam (“Agora faz sentido”), a culpa diminui e escolhas mais coerentes com o próprio ritmo se tornam possíveis.
Pertencer a uma comunidade com vivências semelhantes reduz o isolamento e amplia repertórios de autocuidado. Em vez de “como me corrijo?”, a pergunta muda para “o que meu cérebro precisa para florescer?”.
O autismo feminino não é falha; é uma forma legítima de funcionar. Quando condições mínimas são ajustadas, com luz certa, som certo, ritmo certo e pessoas certas, a potência aparece: foco profundo, criatividade, lealdade, senso de justiça e uma habilidade singular de ver padrões e construir.
O cuidado começa ao reconhecer que não se trata de caber em qualquer lugar, mas de cultivar espaços onde seja possível estar inteira.
Nota da autora: Este texto é informativo e não substitui avaliação individual. Se você se identificou, procure um(a) profissional com experiência em perfil feminino do autismo e em adaptações terapêuticas.